terça-feira, 8 de maio de 2012

ANDANDO-1: O CANTADOR DA RUA



Ninguém imagina quanto me custou esta foto. Foram apenas 10 meticais. 10, só!
A partir do tão baixo preço tive a oportunidade de experimentar este prazer que já nem sei onde encontrar. Este prazer de um cantador da rua. Tocador de sons que relevaram a minha nostalgia. Ah! Sinto meus antepassados nas canções deste velho poeta, cantador e tocador das ruas. Algo me uniu a este artista anónimo que canta também para alegrar os deuses.
Foi na noite de quarta-feira na Av. Karl Marx na baixa da cidade de Maputo. Fazia a minha Marcha desde a Av. Da Malhangalane, de onde buscara entrevista ao músico José Manuel Luís, ou JOMALU como é carinhosamente tratado, a propósito dos seus 20 anos de carreira. Uma entrevista que já mais publicarei porque o gravador me fintou. Desgravou sem que eu me apercebesse. Algo que já mais me acontecera. Nunca, na minha profissão que aprendi em linhas tortas e que a amo como a mim próprio. Em fim…
Caminhei enquanto observava as margens, as gentes, atento aos veículos que intercalam as ruas e às vitrinas por onde se expõem electrodomésticos e vestuários. Confesso que sou louco por manequins. É verdade, principalmente do sexo(?) feminino. Vejo nelas uma ternura vital. Respiram como eu, tão silenciosamente como se não vivessem. E continuava a caminhada. Pela segunda vez ganhei a coragem de andar pelo lado do cemitério da ronil. Lá onde defuntos repousam desde tenra idade. Lá onde os mortos partilham espaço com o amorfo, ladrões, cobras, ratazanas, capim e degradação. Uma degradação que vai para além do social atingiu a moral do homem urbano. Vida dura essa dos mortos, pois não?
E não é que andar me agrada mesmo? Caminhava e descia pela Karl Marx. Para minha atenção, lá do longe vinha um som. Já passavam das seis da noite. Eram praticamente sete. Ouvi de longe o som da viola com percussão de gaita ao fundo. Quem será o músico? Algum espectáculo por perto? E qual é a banda que o acompanha? …os bailarinos? Quanto custa a entrada?

E ia que não ia. Ia me aproximando do local onde vinha aquele som que embaraçou os meus paços já mendigos daquele cantar. Ainda de longe, vi um grupo de crianças de mãos na cintura a remexer na vontade do dedilhar da guitarra daquele homem. Como gesto de agradecimento o músico soprava ainda a gaita que o acompanhava. Cansada? A voz não fica, decide cantar. Era canção de Abílio Mandlaze, Juro Palavra D’ora Sinceramente vou Morrer Assim, diz a letra. Cantava enquanto a plateia delirava e fazia o coro: vou morrer assim. Ah, nostalgia sinto, ao som desta marrabenta que arrebenta com a minha vontade.
Sinto que é urgente aproximar-me. É caso de vida ou morte. Ou vou ou morro ainda peando por este alcatrão intercalado de acácias que se extinguem. Ando mais depressa. Corro. Chego. Paro de olhos fechados a respirar fundo. Agora sinto que vai se recuperando em mim a vida que ia para o além sem esta música. Foi mesmo supremo ter chegado a tempo naquele Show-miss. A tempo não se assiste espectáculo de boa marrabenta nesta cidade. As novas formas de fazer a música, o tal de música comercial, roubou o espírito arrabentista deste ritmo. Agora não se faz boa e pura marrabenta neste país. Faz-se Pandza, Dzukuta e reticências (…). Moçambique, o país da Marrabenta?
De repente a música pára! Ele precisa de 10 meticais para cantar, se queres ouvir, paga. Me era já cobrado o bilhete. Custa 10 meticais. E o que é 10? Uma moeda de ferro e bronze. E o que compra? Um pão e um copo de sumo na pastelaria noutro lado, na Av. Samora Machel. Eu que o diga, sei muito bem o quão essa refeição é divina para estas barrigas negras de pobreza que se mantém absoluta. Ao meio dia vou para lá e alimento-me do trigo sagrado.
Não me custou pagar essa moeda. Era urgente que ouvisse aquele músico que agora é meu ídolo. Quando levei a moeda em sua direcção, uma descoberta…é um cego. Verdade. Os mais cautelosos chamam de deficiência física. E é, não é?
Então quer dizer que o meu marrabentista é cego? Canta e nem se quer tem a felicidade de ver gente a sofrer com o seu talento! Isso me enche de comoção. Sinto que vem uma dor e frio pela espinha dorsal. Nada disso. Nada de pena porque pena só tem galinha. Música é os seus olhos. E este menino sofre como eu. Sofre que até chora. Sucumbe. Este cantador não tem piedade!
Deixo a moeda de 10 na sua mão. O homem a roça enquanto a leva para o bolso. Alegre volta para sua guitarra acústica. Dedilha profundamente. Navega com ternura pela melodia que ele mesmo é quem escolhe. E canta. “Ai ngoma ya ma kanjôôô!” Do Makandza. Ah, essa música mexe com minha alma! Mexe com o meu esqueleto. Vibro. Canto. É urgente que me movimente. É de vital importância, caso ainda me queira vivo. Danço com os pés secos de admiração. É mesmo fantástico. Um cantador pelas ruas do Ka Mpfumo retornado, que pretende ser Maputo. Isso lembra-me os Fanny Mpfumo com sua bandolina nos quintais da Matola Gare a cantarolar em troca de Aguardente. Cachaça. Três palavrinhas: ton-ton-to. “Ni Tchelelani ni ta tsaka”. Cantava tocando e dançando Fanny Mpfumo que tanto admiro. Dr. Honoris Causa da Marrabenta.
E lembro-me do Dilon Djindji que se quer Rei da Marrabenta quando diz “swi ni nyika usiwana, loko ni vona va tsonguana, va nyenya marrabenta” (me entristece ver crianças a odiar marrabenta). Mas esta criança não. Sofre cada vez mais. Esta e várias crianças. Então volto a pensar, será mesmo que a marrabenta, originalmente feita é má para esta geração?
Ah, este cantador de ruas é mesmo bom. Tiro as fotos enquanto persisto em ouvi-lo. Agora toca a dobrar. Toca a viola e a gaita que se encontra pendurada por cima da viola. Ele é mesmo bom. Ritima o ar que se expande por toda a parte. Vem mais gente. E, apesar de não ver, sente que é um herói. Herói das ruas. Um artista anónimo mas guardado por todos. Castidade é o que se tem quando de si fala-se. Mas não o conheço. Nem sei quem é. Pergunto as crianças enquanto faço o registo fotográfico. Nada, elas não sabem. Pergunto à vendedeira que também aplaude com outros adultos. Nada, eles não sabem. Meu Deus é urgente saber quem é este homem. Mas de que importam os nomes na metáfora da vida. Da arte? Em nada vale. Viro-me. Dou as costas ao meu novo ídolo. Ícone que vem das ruas, está nelas e delas vive.
A hipocrisia de um homem honesto aí está: vive de pão seco porque a ninguém rouba. Mas este homem tem o pão da vida nas mãos, na voz e no coração. Há riqueza maior?

Termino o dia feliz. É mesmo incrível essa coisa de ser cidadão nenhum como sou. Não temer o esgoto, as águas negras, os ladrões, mendigos e as grandes bocas. Nada de preservação de imagem como figuras públicas. Nada de chiliques. Sou cidadão comum e futuro poeta. Mas o futuro é incerto, amigos. Prevê-lo é mesmo um exercício de loucos. O importante é preparar a morte a cada um desses Deus que imprevisivelmente amanhece enquanto respiramos, afinal, vivos estamos reféns da morte e, o justo, seria mesmo que vivêssemos preparados para morrer. Aquele cantador das ruas está preparado. Plantou a ternura na terra que não conhece a cor. Alegrou gente e proporcionou derradeiros momentos de masturbação para os bons ouvidos.
Continuo pela mesma avenida que me leva até às entranhas da Rua de Bagamoyo, outrora designada Rua Araújo. Caminho enquanto aprecio prostitutas. Mulheres expostas noutras vitrinas. Vitrinas da vida que satisfaz os homens. Entro pelo bar ao lado, tomo umas quantas tantas cervejas enquanto prevejo o horário do TPM, Transportes Públicos de Maputo, esse companheiro de todos dias para o meu dormitório que fica na Matola. Quanto à vida, faço-a aqui, pelas ruas de Maputo, andando, errante ou com destino, mas sempre encontrando o que poço.

Pequeno Glossário
Ai ngoma ya ma kanjôôô! – Esta é a canção da bebida do Cajú (tradução de acordo com o contexto da música)
Ni Tchelelani ni ta tsaka – Sirvam-me para que eu fique feliz

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