Ninguém imagina quanto me custou
esta foto. Foram apenas 10 meticais. 10, só!
A partir do tão baixo preço tive a
oportunidade de experimentar este prazer que já nem sei onde encontrar. Este
prazer de um cantador da rua. Tocador de sons que relevaram a minha nostalgia.
Ah! Sinto meus antepassados nas canções deste velho poeta, cantador e tocador
das ruas. Algo me uniu a este artista anónimo que canta também para alegrar os
deuses.
Foi na noite de quarta-feira na Av.
Karl Marx na baixa da cidade de Maputo. Fazia a minha Marcha desde a Av. Da
Malhangalane, de onde buscara entrevista ao músico José Manuel Luís, ou JOMALU
como é carinhosamente tratado, a propósito dos seus 20 anos de carreira. Uma
entrevista que já mais publicarei porque o gravador me fintou. Desgravou sem
que eu me apercebesse. Algo que já mais me acontecera. Nunca, na minha
profissão que aprendi em linhas tortas e que a amo como a mim próprio. Em fim…
Caminhei enquanto observava as
margens, as gentes, atento aos veículos que intercalam as ruas e às vitrinas
por onde se expõem electrodomésticos e vestuários. Confesso que sou louco por
manequins. É verdade, principalmente do sexo(?) feminino. Vejo nelas uma
ternura vital. Respiram como eu, tão silenciosamente como se não vivessem. E
continuava a caminhada. Pela segunda vez ganhei a coragem de andar pelo lado do
cemitério da ronil. Lá onde defuntos repousam desde tenra idade. Lá onde os
mortos partilham espaço com o amorfo, ladrões, cobras, ratazanas, capim e
degradação. Uma degradação que vai para além do social atingiu a moral do homem
urbano. Vida dura essa dos mortos, pois não?
E não é que andar me agrada mesmo?
Caminhava e descia pela Karl Marx. Para minha atenção, lá do longe vinha um
som. Já passavam das seis da noite. Eram praticamente sete. Ouvi de longe o som
da viola com percussão de gaita ao fundo. Quem será o músico? Algum espectáculo
por perto? E qual é a banda que o acompanha? …os bailarinos? Quanto custa a
entrada?
E ia que não ia. Ia me aproximando
do local onde vinha aquele som que embaraçou os meus paços já mendigos daquele
cantar. Ainda de longe, vi um grupo de crianças de mãos na cintura a remexer na
vontade do dedilhar da guitarra daquele homem. Como gesto de agradecimento o
músico soprava ainda a gaita que o acompanhava. Cansada? A voz não fica, decide
cantar. Era canção de Abílio Mandlaze, Juro
Palavra D’ora Sinceramente vou Morrer Assim, diz a letra. Cantava enquanto
a plateia delirava e fazia o coro: vou
morrer assim. Ah, nostalgia sinto, ao som desta marrabenta que arrebenta
com a minha vontade.
Sinto que é urgente aproximar-me. É
caso de vida ou morte. Ou vou ou morro ainda peando por este alcatrão
intercalado de acácias que se extinguem. Ando mais depressa. Corro. Chego. Paro
de olhos fechados a respirar fundo. Agora sinto que vai se recuperando em mim a
vida que ia para o além sem esta música. Foi mesmo supremo ter chegado a tempo
naquele Show-miss. A tempo não se assiste espectáculo de boa marrabenta nesta
cidade. As novas formas de fazer a música, o tal de música comercial, roubou o
espírito arrabentista deste ritmo. Agora não se faz boa e pura marrabenta neste
país. Faz-se Pandza, Dzukuta e reticências (…). Moçambique, o país da Marrabenta?
De repente a música pára! Ele precisa de 10 meticais para cantar, se
queres ouvir, paga. Me era já cobrado o bilhete. Custa 10 meticais. E o que
é 10? Uma moeda de ferro e bronze. E o que compra? Um pão e um copo de sumo na
pastelaria noutro lado, na Av. Samora Machel. Eu que o diga, sei muito bem o
quão essa refeição é divina para estas barrigas negras de pobreza que se mantém
absoluta. Ao meio dia vou para lá e alimento-me do trigo sagrado.
Não me custou pagar essa moeda. Era
urgente que ouvisse aquele músico que agora é meu ídolo. Quando levei a moeda
em sua direcção, uma descoberta…é um cego. Verdade. Os mais cautelosos chamam
de deficiência física. E é, não é?
Então quer dizer que o meu
marrabentista é cego? Canta e nem se quer tem a felicidade de ver gente a
sofrer com o seu talento! Isso me enche de comoção. Sinto que vem uma dor e
frio pela espinha dorsal. Nada disso. Nada de pena porque pena só tem galinha.
Música é os seus olhos. E este menino sofre como eu. Sofre que até chora.
Sucumbe. Este cantador não tem piedade!
Deixo a moeda de 10 na sua mão. O
homem a roça enquanto a leva para o bolso. Alegre volta para sua guitarra
acústica. Dedilha profundamente. Navega com ternura pela melodia que ele mesmo
é quem escolhe. E canta. “Ai ngoma ya ma kanjôôô!” Do Makandza. Ah, essa música
mexe com minha alma! Mexe com o meu esqueleto. Vibro. Canto. É urgente que me
movimente. É de vital importância, caso ainda me queira vivo. Danço com os pés
secos de admiração. É mesmo fantástico. Um cantador pelas ruas do Ka Mpfumo
retornado, que pretende ser Maputo. Isso lembra-me os Fanny Mpfumo com sua bandolina
nos quintais da Matola Gare a cantarolar em troca de Aguardente. Cachaça. Três
palavrinhas: ton-ton-to. “Ni Tchelelani ni ta tsaka”. Cantava tocando e
dançando Fanny Mpfumo que tanto admiro. Dr. Honoris
Causa da Marrabenta.
E lembro-me do Dilon Djindji que se
quer Rei da Marrabenta quando diz “swi ni nyika usiwana, loko ni vona va
tsonguana, va nyenya marrabenta” (me entristece ver crianças a odiar
marrabenta). Mas esta criança não. Sofre cada vez mais. Esta e várias crianças.
Então volto a pensar, será mesmo que a marrabenta, originalmente feita é má
para esta geração?
Ah, este cantador de ruas é mesmo
bom. Tiro as fotos enquanto persisto em ouvi-lo. Agora toca a dobrar. Toca a
viola e a gaita que se encontra pendurada por cima da viola. Ele é mesmo bom.
Ritima o ar que se expande por toda a parte. Vem mais gente. E, apesar de não
ver, sente que é um herói. Herói das ruas. Um artista anónimo mas guardado por
todos. Castidade é o que se tem quando de si fala-se. Mas não o conheço. Nem
sei quem é. Pergunto as crianças enquanto faço o registo fotográfico. Nada,
elas não sabem. Pergunto à vendedeira que também aplaude com outros adultos.
Nada, eles não sabem. Meu Deus é urgente saber quem é este homem. Mas de que
importam os nomes na metáfora da vida. Da arte? Em nada vale. Viro-me. Dou as
costas ao meu novo ídolo. Ícone que vem das ruas, está nelas e delas vive.
A hipocrisia de um homem honesto aí
está: vive de pão seco porque a ninguém rouba. Mas este homem tem o pão da vida
nas mãos, na voz e no coração. Há riqueza maior?
Termino o dia feliz. É mesmo
incrível essa coisa de ser cidadão nenhum como sou. Não temer o esgoto, as
águas negras, os ladrões, mendigos e as grandes bocas. Nada de preservação de
imagem como figuras públicas. Nada de chiliques. Sou cidadão comum e futuro
poeta. Mas o futuro é incerto, amigos. Prevê-lo é mesmo um exercício de loucos.
O importante é preparar a morte a cada um desses Deus que imprevisivelmente
amanhece enquanto respiramos, afinal, vivos estamos reféns da morte e, o justo,
seria mesmo que vivêssemos preparados para morrer. Aquele cantador das ruas
está preparado. Plantou a ternura na terra que não conhece a cor. Alegrou gente
e proporcionou derradeiros momentos de masturbação para os bons ouvidos.
Continuo pela mesma avenida que me
leva até às entranhas da Rua de Bagamoyo, outrora designada Rua Araújo. Caminho
enquanto aprecio prostitutas. Mulheres expostas noutras vitrinas. Vitrinas da
vida que satisfaz os homens. Entro pelo bar ao lado, tomo umas quantas tantas
cervejas enquanto prevejo o horário do TPM, Transportes Públicos de Maputo,
esse companheiro de todos dias para o meu dormitório que fica na Matola. Quanto
à vida, faço-a aqui, pelas ruas de Maputo, andando, errante ou com destino, mas
sempre encontrando o que poço.
Pequeno Glossário
Ai ngoma ya ma kanjôôô! – Esta é a canção da bebida do Cajú
(tradução de acordo com o contexto da música)
Ni Tchelelani ni ta tsaka – Sirvam-me para que eu fique feliz
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