Por Eduardo
Quive*
Apenas o
poeta sabe a dor do parto da palavra. Há, na verdade, dores que só o poeta as
conhece. Mas há dores maiores, dores de carne, o fulgor do que a sociedade vive
e padece.
Isso
remete-nos de imediato à uma dor física, eis porque Ronaldo Cagiano coloca-nos
estendidos ao sol para assarmos e fermentarmos as dores que as grandes
metrópoles enfrentam que sob caiem directamente ao cidadão.
“O Sol nas
Feridas” em 63 poemas reunidos, entre a lírica amorosa e a crítica social, é a
solução vista por muitos olhos, mas que só um poeta embondeiro, maduro e vivido
sabe justificar a dor do corpo com a sagacidade que o assunto exige.
Lembrar
Maria Teresa Horta nestas alturas pode-nos ser uma saída mais eficaz para
justificar o sentido desta análise. De acordo com a escritora portuguesa, a
escrita e a vida caminham juntas “tem que viver para se ser escritor” – diz
ela.
Em
Moçambique, de onde me chegou o livro enviado atrevidamente pelo autor, sem
temer os oceanos que o mesmo atravessaria desde o Brasil, há um outro
embondeiro, Suleiman Cassamo, autor do clássico e símbolo nacional “O Regresso
do Morto”, tornar-se-ia cúmplice da poesia deste “velho poeta”, pois disse uma
vez que “é preciso ter vivido para escrever”.
É o
escritor, o poeta, e os seus devaneios; é o poeta, o cidadão e as razões da sua
poesia missionária, não alheia aos mistérios do corpo. Ronaldo Cagiano sabe ser
o que tem que ser na indagação e no desassossego a que a sina poética nos
remete. Com a devida serenidade é lírico, cuida de si e dos seus sentimentos,
mas com a incompreensão dos tempos é externo, exógeno, sente no lugar dos
outros refém da engajada posição do poeta zelador e consciente de que “o ofício
da verdade é proibido pôr algemas nas palavras”. Liberta-se e fala de sangue,
abismos, precipícios, a gênese e o fim.
Reinaldo
Cagiano, este meu desconhecido poeta “conta” na sua poesia convulsiva em “O Sol
nas Feridas” que “entre a fuga/e os deslizes/ o poema vinga”, mas mais do que
esse olhar atento em “Gênese”, o encontramos a consciência e a saudade de algum
tempo ao olhar já nós, atentamente o poema “Escamas”:
(…) A vida, em suas
estranhas latitudes,
território lisérgico
onde dormiam meus fantasmas
já não é mais o
cemitério onde cultivo desilusões
hoje, planeta do qual
não me escondo,
catapulta-me sobre os abismos.
Ao a poesia de Cagiano, com certeza não se sairá sem se indagar: como
esconder as ferias do sol, quando o meio mundo desconhece, o seu próprio
paradeiro? E a poesia é chamada a tão estremo papel de contar o que todos
sabem. A essa dura tarefa cabe ao poeta
que poderá não ser compreendido.
Sobre esse aspecto, Reynaldo Damazio já chama atenção na sua nota de
leitura no livro ao dizer que “ o sentimento de impermanência e de precariedade
ronda a poesia e exige do poeta uma tomada de posição, no sentido de
enfrentamento das verdades provisórias.” É essa a posição que Ronaldo Cagiano
escolheu tomar ao ver o que viu:
Enquanto o cortejo seguia
alheio aos gestos
automáticos
das mãos que cerravam as
portas
Outros continuavam a vida
imunes à que passava,
despojada de sua última
chamada.
A cidade não seria
diferente
porque amanhã
outras notícias viriam
É assim que Ronaldo Cagiano faz a relação dos males do seu tempo desde a
nascença em Cataguases, Minas Gerais, passando por Brasília, onde formou-se em
direito chegado à São Paulo onde reside e tem o seu trabalho. Mas não parou por
aí escalou Buenos Aires, Teerã, Berlim, Pirapetinga, Lisboa, Paris, Adrogue,
Alentejo, Morrinhos, Persépolis, Itabira, essas “geografias do acaso/ no
arremate dos acasos/ onde pululam pássaros aziagos/ e homens ensimesmados/
habitam cidades sem memória,/ cemitério dos vivos.
É assim que o poeta faz a sua poesia, não omitindo o tempo e o espaço, numa
forma perplexa de li dar com o texto que quer também contar histórias dos
nossos dias. Uma poesia, que se pode dizer de combate aos males de hoje,
inclusive a da falta de amor, saudade e das irmandades manobradas pelos contextos.
Certamente seja por isso que até os males do passado são elementos
indispensáveis dessa matéria concentrada nessa obra que pode-se chamar de
antologia, onde o autor termina com uma pergunta, no mínimo socorrista “Onde
está Deus/ cujo poder não exercita?/ cuja vontade não realiza?/ cujas bênçãos
nunca vêm?” pergunta o poeta, sabendo da ineficiência da sua função
perguntativa. Pergunta para não dizer que não perguntou e que todos
testemunhamos. Quem o responde?
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