José Inácio Vieira de Melo / Fotos: Ricardo Prado |
A poesia é uma religião e ele, um apóstolo da palavra. Assim o poeta José Inácio Vieira de Melo define a si mesmo e sua obra. Às vésperas do lançamento de 50 poemas escolhidos pelo autor, ele responde a uma entrevista coletiva a 21 jovens poetas. Desses, dezessete participam da coletânea Sangue Novo, organizada pelo próprio JIVM, que reúne novos escritores baianos. Foram convidados, ainda, o paraibano Bruno Gaudêncio, o moçambicano Eduardo Quive, o paulista Paulo Ortiz e o cearense Wender Montenegro.
ALEXANDRE COUTINHO – Nesta Casa que agora é fotografada, revista, você chegou a alterar a disposição de versos, estrofes, como você mesmo diz, passaram por aí "ventos dadaístas"? Como foi voltar ao “cemitério de ilusões” e selecionar os 50 poemas que atestassem ao poeta doido de pedra “a Pós-Idade da Pedra Sagrada”? Seria a tradição mesma que invoca nos poemas, em Cristo, na terra e na família, aquilo que faz o homem e ilumina as partes mais sombrias da casa, este labirinto de si mesmo, o encontro mais próximo da origem a que você se refere?
JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO – Estou vivendo a casa dos meus quarenta anos. É um não lugar que tem muito me ensinado. Visitar meus cinco livros publicados e destacar 47 poemas foi uma mão de obra muito difícil. Três são inéditos (“Aurora”, “Cântico para Gabriel” e “Sonata das musas escarlates”). Os “ventos dadaístas” quase que não me visitaram durante o processo de seleção, de modo que poucas mudanças foram feitas nos poemas. O que mais me impressionou foi perceber que realmente meu tempo está passando, que os versos da juventude ainda soam jovens e trazem todas as lembranças do que vivenciei – dos lugares, das pessoas. As sensações parecem estar bem ali, bem aqui diante e dentro de mim. Isso é mágico, é um encanto, tem seus perfumes, mas faz transbordar também as dores. E é muito bom constatar que em toda a minha vida a poesia esteve presente.
A tradição é um referencial. O labirinto está em mim. Cada passo que dou é um percorrer de searas íntimas e cósmicas. O animal que me habita há de perambular até chegar a hora em que suas carnes não mais resistam. Mas acredito que não sou apenas este animal. Toda explicação para vida e para o poema é muito pouco para mim. A origem é apenas o meu jeito de nomear o que não tem nome. O meu é caminhar por aí, por aqui, até virar cinza e flor, pó e nada.
ANDRÉ GUERRA – O que representa a transmutação dos mandacarus e das algarobeiras em rosas? É o mesmo jardim, a mesma seiva? Ou são outros ventos?
JIVM – Nada é igual, mas todo dia é sempre a mesma coisa. E como tudo é tão novo! São paradoxos, meu amigo! A paisagem dos mandacarus e das algarobeiras se amalgamaram no Roseiral. O Roseiral é um Sertão sombreado pelas várias cores do encarnado escarlate. O sumo dos cactáceos e das leguminosas do Sertão é a mesma seiva das rosas que correm em minhas veias – eu sou o ser tão. Filho do Vento Nordeste, recebo mensagens dos ventos dadaístas, que a cada instante se renovam e se transformam, sendo sempre os mesmos ares. Agora, mais do que nunca, nesta antologia dos 50 poemas, os meus cinco livros publicados se transmudaram num único jardim.
BERNARDO ALMEIDA – Aos 43, você seleciona 50 poemas de cinco livros. Já dá pouco mais de um para cada ano de vida – como se os arroubos da poesia obedecessem à contagem tic-tac do tempo lógico. Mas, as belezas que lhe incomodaram chegaram às bodas de sangue. E cinquenta, para ti, é uma promessa que virou tendência e vai se afirmando como vantagem (após tantos nevoeiros). Aí você nos diz que reside ainda na casa dos seus 40 anos... Mas, algo já lhe deslocou de lá, com um abalo sísmico de pelo menos 3 na escala Richter. A meu ver, já é o suficiente para criar movimento. Diante disso, onde reside agora o “outro” na sua poesia? O “outro” como eco, o “outro” como você reescrito, o “outro” como o “eu” do poeta diluído em tantos outros que sentem o que acreditam ser o que você sentiu ao escrever cada poema?
JIVM – Em outra entrevista coletiva falei que quando faço meus poemas não penso no outro. E, agora, corroboro esta afirmação. A minha poesia surge de uma necessidade de expressão, como uma sede desesperada que só acaba quando bebo na fonte dos versos. Mas, depois de pronta, é o outro que dá vida à poesia que está no livro, no blog, no cd ou em qualquer outro suporte. É o leitor quem acende a fogueira das metáforas que ali estão. E se houver poesia de fato e se o leitor/receptor se identificar de alguma maneira com aquela arte, aí sim a poesia ganha dimensão e há de acontecer um êxtase, um gozo, uma epifania, uma alegria. E aí já é o outro que possui e recria, a partir da sua emoção, o poema. Faço poesia por necessidade, mas sem o outro não há reconhecimento público do poema nem do poeta: “Fantasma de barro/ preciso de um amálgama/ e que teus olhos me afirmem”.
BRUNO GAUDÊNCIO – Sabemos das dificuldades que o escritor tem em situar sua própria obra dentro de um contexto histórico da qual ele mesmo faz parte (no caso, refiro-me a literatura brasileira contemporânea), porém, gosto sempre de indagar sobre este viés, diríamos, de “autocrítica do poeta”. Sendo assim, diante da publicação do livro 50 poemas escolhidos pelo autor, minha pergunta é: como José Inácio Vieira de Melo percebe e lê a sua própria poesia neste início do século XXI, fazendo parte de uma geração em que múltiplas vozes se apresentam, como os cânones Ferreira Gullar, Lêdo Ivo, Augusto de Campos e Manoel de Barros, e ao mesmo tempo interagindo com jovens que aos poucos se sobressaem como “militantes líricos da poesia”, a exemplo dos poetas do Sangue Novo (todos vivenciando as tantas continuidades e rupturas do seu tempo – seja no que se refere à formatividade ou a temática da poesia atual)?
JIVM – Falar do lugar que minha poesia ocupa dentro de um contexto tão vibrante e tão versátil como o da poesia brasileira contemporânea é algo que realmente não gosto de fazer. Prefiro que os outros o façam, mesmo que sejam os que tecem comentários ofensivos gratuitos, pois até esses invejosos contribuem para que eu perceba a dimensão do espaço que minha produção ocupa. O que percebo e sinto é que minha poesia é mais uma voz, oriunda de leituras e releituras de tantas vozes, que se junta a um turbilhão de outras vozes para compor esse quadro tão maleável que é o da poesia contemporânea brasileira. Minha poesia tem alcançado um publico considerável, a crítica tem dedicado atenção para os meus livros, que têm sido motivo de estudos acadêmicos – monografias de graduação e de especialização e, até mesmo, tese de doutorado. Tudo isso é muito relevante, mas não define nada ainda. Sou muito presente e muito atuante. Isso, provavelmente, influencia muito na repercussão do meu trabalho. O tempo, este sim, é o grande balizador.
CAIO RUDÁ OLIVEIRA – Em entrevista concedida à Revista Correio das Artes, você esclarece muito sobre a obra Roseiral, sua concepção e composição, sua estética e temática, informações que auxiliam a leitura. Para você, em que medida o autor é responsável pelo entendimento de sua obra? Acha válido lançar mão de elementos paratextuais, sobretudo do epitexto, para complementar seu sentido?
JIVM – Isso é muito relativo. E depende muito de qual seja a intenção do autor. De minha parte, não faço um livro com intenções determinadas. As coisas vão acontecendo, ganhando corpo, até chegar a uma conformação que me satisfaça, em alguma medida. Meus livros sempre são formados por capítulos, onde figuram poemas que tem alguma aproximação temática e/ou formal. Quanto à questão de entendimento da obra, penso que o poeta não tem nenhum compromisso com isso. Cada leitor é que deve buscar os caminhos que mais lhe são agradáveis. Agora, se o camarada escreve um livro didático de Geografia ou um romance histórico, espera-se que haja coerência e objetividade no seu texto. Sou a favor de que cada escritor deve usar de tudo o que lhe aprouver para realizar sua obra. Nos meus livros, eu não explico nada sobre os poemas. É o livro de poesia e pronto! Numa entrevista é outra coisa. É fora do livro. Numa entrevista, não faço poesia, apenas falo sobre poesia. Embora entenda que o que diga pode direcionar as leituras. Mas acredito, também, que o leitor de poesia não faz apenas uma leitura, ele faz leituras.
CLARISSA MACEDO – “A sagração do mito", presente na antologia 50 poemas escolhidos pelo autor, é um poema que cutuca, de modos diversos, e que, entre outras coisas, desponta um Ser que se busca, que necessita, que se sabe, que ordena e que se encontra estilhaçado. Em entrevista ao Correio das Artes, você afirma que busca "dizer as coisas de uma forma que soe ao menos pessoal". Como você diria esta coexistência, se assim posso chamar, de seres em um Ser tão real e cósmico, dividido entre o universo universal e o universo particular forjados por José Inácio Vieira de Melo, alimentado pelo 'Mito em Sagração' e constituído por essa sua poesia de Fogo e Rosas, de procuras e de fugas, no poema aqui citado?
JIVM – Diria como disse lá no poema. Um ser que se abisma pela perplexidade da existência. Que sofre encantamentos e êxtases com as mínimas coisas da vida, mas, ao mesmo tempo, sofre terrivelmente com a finitude das coisas que o rodeiam, porque sabe que é também o seu caminho. Minha poesia é de fogo porque sou do Sertão, porque sou adorador do fogo, porque o fogo me purifica. Meus poemas são meu jardim, onde estão versos de mandacarus, versos de algarobas e todas estas rosas tão belas e cheias de espinhos, que são minhas musas, sem as quais eu seria apenas um relincho sem graça, sem ritmo e sem poesia. O meu ser, tão perdido, encontra pouso em outros seres que me acham e que me mostram para mim mesmo – então, às vezes, eu me vejo na menina dos teus olhos, e sinto “todos os meus estilhaços/ todos os eus consagrados” – e é tão bom!
DANIEL FARIAS – Inácio, vejo-te como o centauro das rosas incandescentes. Valho-me da poesia impecável de Luís Antonio Cajazeira Ramos para dizer que nos teus versos, José, há "algo de novo,/ muito antigo e completo, feito fogo / ou verdade", como pedra, sertão, criança e silêncio. E quero saber: o que em ti não cabe? O que permanece aceso? O que há de arisco e "ingalopável"?
JIVM – No ser cabe tudo o que se conhece. E o que não se conhece está lá também – bem dentro do ser. Toda descoberta é um encontro. O ser é morada de tudo. É só olhar o que está acontecendo no mundo e ter consciência de quem está realizando. O que busco é transformar toda essa força destruidora, que existe potencialmente em qualquer ser, em algo saudável que possa me proporcionar sossego sem agravar o próximo. O que permanece aceso é essa Luz redundantemente incandescente que me convida para viver com intensidade todas as delícias da existência. E até a dor de viver precisa ser sentida com intensidade. A vida em toda a sua extensão e largura, com todos os temperos ariscos, com todos os riscos de um galope dentro da imensidão, é o que há.
EDUARDO QUIVE – Que posição ocupam, entre vários, os 50 poemas que selecionou e em que momentos eles se encontram na sua vida pessoal? Que mensagem pretende transmitir com os mesmos, aos seus leitores?
JIVM – São poemas que fazem parte de toda a minha trajetória. Estão na antologia desde “Registro da fala do silêncio”, o primeiro poema de meu primeiro livro, até “A casa dos meus quarenta anos”, o derradeiro poema do meu livro mais recente, portanto são poemas que me acompanham por toda a minha caminhada poética e por boa parte da minha vida. Ao invés de uma mensagem, o que tento em todos os meus poemas, tanto nos que foram selecionados como nos que ficaram de fora, é expressar minha emoção. Aos meus leitores ofereço o que tenho de melhor, que é a minha emoção através da arte poética.
ÉRICA AZEVEDO – A necessidade da poesia que você diz lhe impulsionar salta em seus versos e nós, leitores, também sentimos sua necessidade e sua presença. É a poesia como meio para suportar o peso do viver, uma vez que o único caminho é “riscar esporas no vazio” porque “para quem está no breu/ qualquer lampejo é alumbramento” e o homem não “suportaria entender a verdade do lugar nenhum”. É a purificação pelo fogo, constante metáfora em sua lírica. Até que ponto essa busca impulsionou você na seleção dos poemas aqui reunidos? Há versos que queimam mais e, por isso, estão nesta antologia?
JIVM – Tive muita dificuldade em fazer a seleção. E mais dificuldade ainda em fazer a divisão. Os poemas estão repartidos em cinco capítulos que tentam seguir uma orientação temática, mas sem muita rigidez. Poderiam, tranquilamente, estar num único bloco, na sequencia em que estão dispostos, que não faria muita diferença. Gostei do critério que você apontou na sua pergunta: “os versos que queimam mais”. Pois é isso mesmo, minha poética me marca como fogo. E os poemas que escolhi são aqueles que ainda estão em brasa, tal qual uma sarça ardente. Claro que são também aqueles que considero mais bem realizados formalmente, em que sinto fluir um ritmo e uma musicalidade que justificam a presença na antologia.
FABRÍCIO DE QUEIROZ VENÂNCIO – Você comenta que os poemas estão distribuídos em uma "orientação temática, sem muita rigidez". Ou seja, não há uma ordem cronológica com relação à publicação de seus livros e isso pode ser ratificado, por exemplo, no aparecimento de poemas de A infância do Centauro (bem como dos demais) em todos os capítulos. Qual a contribuição, considerando o entendimento da sua poesia e o histórico de suas obras, desta seleção para um leitor novo e um experimentado em José Inácio Vieira de Melo? Trata-se de um ímpeto esclarecedor, é resultado de uma "sarça ardente" do momento ou é uma visão defronte do espelho do poeta, tida num domingo de comunhão?
JIVM – A palavra “antologia” significa, na sua origem, florilégio, tratado das flores. Então, o que se pretende ao publicar um livro que assim será chamado é escolher o que há de melhor em uma obra – ou pelo menos aquilo que o autor considera como tal. A contribuição é a de escolher com cuidado e oferecer aos leitores as flores dos meus jardins dos mandacarus e das algarobeiras e as rosas mais ardentes da minha infância e do meu Roseiral. Quando fui convidado por Waldir Ribeiro do Val, no início de 2010, para participar da coleção 50 poemas escolhidos pelo autor, confesso que fiquei assustado, mas, ao mesmo tempo, muito contente, pois se trata de uma coleção da qual já participaram poetas da minha admiração, como Lêdo Ivo, Anderson Braga Horta, Astrid Cabral, Ildásio Tavares, Gilberto Mendonça Teles, Antonio Carlos Secchin, Tanussi Cardoso. Mas como estava para publicar o Roseiral, então pedi um tempo, pedi para que a publicação ficasse para 2011. E é o que está acontecendo.
A distribuição dos poemas não é rígida, não obedece uma ordem cronológica, mas pode ser feito um roteiro a partir dela. A primeira parte apresenta poemas místicos e metafísicos, nos quais, ora se afirma uma fé, ora se questiona a existência. Na segunda, visito a temática da infância, adentro pelo universo familiar e desemboco no Sertão. O terceiro capítulo é uma sonata para as minhas musas escarlates. No quarto, resolvi colocar os poemas que constituem a minha poética, alguns são metapoemas e outros constituem uma mítica autoral. A quinta e derradeira seção, apresenta poemas que tratam da finitude, que falam do quanto somos efêmeros, acabando com um breve canto de paz. Por outro lado, todos esses temas estão espraiados por todas as páginas da antologia.
GEORGIO RIOS – Embora você vaticine nestes versos “os livros foram lidos e tudo já foi dito”, também outro poeta disse: “Al andar se hace el camino”. Nós os leitores de poesia, da sua poesia, procuramos saber: o poeta trás no surrão alguma nova invenção poética acomodada em novo livro? Havendo, trilhará novos varedos, como fez com Roseiral?
JIVM – Meus livros são como o conto de Borges “O jardim dos caminhos que se bifurcam”. A gente vai num caminho aparece uma bifurcação, a gente escolhe um. Mais adiante aparece outra bifurcação, a gente escolhe mais outro, e assim por diante. Às vezes, mais que uma bifurcação, a gente se depara com uma encruzilhada e aí é mais complicado de escolher, mas a gente escolhe. E segue. No final todo o labirinto só tem uma saída. O que quero dizer é que estou o tempo todo a escrever um livro. Espero que ao final dessa minha existência eu consiga cumprir minha missão. O próximo livro é um capítulo da minha escritura que muito me agrada. Chama-se Pedra Só. E por enquanto é só.
GIBRAN SOUSA – As referências, as circunstâncias, as influências e digressões, todos e tantos atalhos internos e externos a cadenciar a estética de um novo poema, imprevisível. As formas, as fôrmas, os sinais, os sons, até onde podem ir? Você sente necessidade de dizer de outras maneiras? O que representa a estética hoje na poesia? E na sua poesia?
JIVM – A poesia pode ir até onde a luz não vai. E cada poeta, quando poeta de fato, diz as coisas de uma maneira que não é a tua nem a minha nem a de outrem, portanto diz de sua maneira. Ontem, hoje e amanhã, a poesia foi/é/será estética. Alguns ingênuos fazem afirmações, salientando que tal poeta faz uma poesia de hoje, uma poesia viva, do seu tempo. Entendo que quem faz uma poesia de hoje, faz uma poesia datada. A grande poesia, para mim, atravessa os tempos, como acontece com a obra Hölderlin e de Homero, como acontece com os Salmos, de Davi e com os Cânticos, de Salomão. Poesia sem estética não é poesia, é apenas um mero derramamento verborrágico ou então uma pretensiosa construção de grafitos estéreis espalhados na folha do papel – e nada pode ser pior.
GILDEONE DOS SANTOS OLIVEIRA – Além de galopar em seus versos montado num Cavalo de Fogo, você exerce também a função de um escritor que atua no meio literário, tendo organizado duas antologias; Concerto lírico a quinze vozes (2004) e mais recente o Sangue Novo (2011). De onde vem esse desejo de ser um escritor atuante? Pretende continuar contribuindo de que forma com a literatura, além de esporear seus versos? O que você pensa da relação da literatura com o mundo virtual e as novas mídias?
JIVM – Eu sinto que as coisas precisam ser feitas. Como quase ninguém se dispõe a fazer nada, eu me coloco no lugar de fazer. Ou seja, eu vou lá e faço. Com o passar do tempo, as pessoas foram percebendo que eu tenho essa capacidade de movimentação e de articulação. Então, o tempo todo, tem gente me procurando pra fazer isso e aquilo e mais... Só que chegou a um ponto em que o tempo não dá mais para tantas coisas. Seria necessário que meu dia tivesse ao menos 48 horas para eu atender metade das propostas que me são feitas. De onde vem esse desejo? É da minha natureza mesmo.
Olha, se não fosse a internet com as redes sociais e os milhares e milhões de blogs e de sites, a minha poesia não teria um décimo da repercussão que tem. A relação entre o mundo virtual e a literatura é muito proveitosa. As novas mídias trouxeram uma enorme contribuição para a difusão da literatura pelo mundo afora.
JANARA SOARES – O silêncio é recorrente em sua poesia, encontrado em diferentes contextos. Podemos vê-lo em vários poemas, como “Registro da fala do silêncio”, “Rosa Mística”, “Aurora”, “Cerca de Pedra” e outros. “Em silêncio”, “você ouve o silêncio das estrelas”. Depois de tudo já ter sido dito, de todos os livros terem sido lidos, “resta o silêncio”. Você “contempla a mansidão do silêncio que voa”. Como o silêncio influencia o seu processo de criação? Ele é necessário durante o fazer poético ou é um estado utópico que você transporta para o poema para nele vivê-lo? Como foi sua relação com o silêncio no início de sua atuação como poeta e como é hoje, na casa dos quarenta, tendo caminhado bastante na poesia?
JIVM – Apesar de ser bastante falante, o silêncio sempre foi minha melhor companhia. Passei boa parte de minha vida morando sozinho e em lugares ermos – lugares abertos, com forte presença da natureza e com poucas pessoas por perto. Nos quase quatro anos em que morei em Maceió, na minha adolescência, vivi momentos de uma relação amorosa com o mar, sobretudo com as praias de Pajuçara e de Jacarecica. Momentos em que entrava em silêncio e que podia sentir a sinfonia das ondas do mar. Outro momento significativo da minha vida foi a década que passei na fazenda Cerca de Pedra, onde vivenciei momentos sublimes de espanto dentro do silêncio. Foi um período em que convivi com pouquíssimas pessoas e, portanto, quase não falava. Depois de ter aprendido a falar, você já passou algum dia de sua vida sem dar uma palavra? Eu já. Mas um turbilhão de vozes gritava dentro de mim. Em outros momentos, eu esvaziava o pensamento e não percebia nem sentia em mim a linguagem – e sobre isso não há o que dizer, pois a palavra não dá conta desse plano. Pois é, na Cerca de Pedra vivenciei momentos em que o único outro que existia era eu mesmo. Daí meu primeiro livro se chamar Códigos do silêncio, título que nem foi ideia minha, mas do grande poeta Gerardo Mello Mourão, meu mestre e amigo saudoso. Daí o primeiro poema de meu primeiro livro ser o “Registro da fala do silêncio”. Eu não sei o que é processo de criação, mas, para mim, sem silêncio não há poesia. Como me faz bem acender uma fogueira no terreiro da casa dos meus quarenta anos, lá na Pedra Só, e sentir as centelhas virarem estrelas! Como é mágico no alvorecer do dia caminhar sobre um lajedo e sentir a mansidão do silêncio que voa e os violões do sol na boca dos pássaros! A minha relação com o silêncio acontece o tempo todo. E não importa que esteja em meio à multidão, não importa o labafero que esteja acontecendo, para vivenciar e dar corporeidade à minha poesia, preciso entrar em silêncio.
LIDIANE NUNES – Os poemas que fazem parte do livro 50 poemas escolhidos pelo autor possuem uma variedade de temas: o misticismo, a memória, o galopar no sertão, as musas, a família, a própria poesia, o silêncio, a brevidade da existência, o caminhar sem rumo, entre outros. Isso é prova de que a sua leitura é vasta, afinal, um bom poeta é, antes de tudo, um bom leitor. No ensaio intitulado Tradição e talento individual, T.S Eliot defende que “nenhum poeta e nenhum artista de qualquer ofício produz sentido integral sozinho. Seu significado é a apreciação de sua relação com os poetas e artistas mortos.” Sendo assim, o que você anda lendo? Quais os autores – vivos ou mortos – que mais influenciam o seu fazer poético?
JIVM – De uma maneira ou de outra, toda leitura me influencia. Há livros que abro e começo a ler e a sensação que vem, logo de imediato, é que aquele tipo de escritura é um caminho que não trilharei, mas que tem importância, visto que passa a ser um referencial das searas que não frequentarei por pura falta de interesse. Outros fazem com que tenha a vontade de, cada vez mais, me aprofundar naquela obra, de sentir os processos que desencadearam aqueles momentos estéticos de rara beleza. Neste sentido, poetas como Jorge de Lima, Gerardo Mello Mourão, Mariana Ianelli, Herberto Helder, Foed Castro Chamma, Myriam Fraga, Roberval Pereyr e Francisco Carvalho têm exercido uma influência muito salutar para mim. São poetas com os quais tenho uma sintonia muito grande. Há outros que, apesar de serem bem distintos e distantes do meu fazer poético, são poetas pelos quais tenho profunda admiração, como é o caso de Alberto da Cunha Melo e Luís Antonio Cajazeira Ramos. Outros que muito contribuíram para a minha formação foram/são Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa, Walt Whitman, Konstantinos Kaváfis, Garcia Lorca, Rafael Alberti, Juan Ramon Jimenez, Rainer Maria Rilke, Hölderlin. Na prosa, além de Miguel de Cervantes, Gabriel Garcia Marquez, Machado de Assis, Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa, destaco a minha afinidade com a obra de Ronaldo Correia de Brito, José Alcides Pinto, Hermann Hesse e William Faukner. Mas o fundamento e o fundador de todos os que citei até agora é Homero.
Acabei de ler a poesia reunida de Dora Ferreira da Silva, poeta paulista de grande valor, e estou a ler Vivendo sob o fogo, uma autobiografia da poeta Marina Tsvetáieva feita a partir das cartas que enviava aos seus amigos e que foram selecionadas por Tzvetan Todorov. Através das suas correspondências o leitor conhecerá uma das maiores escritoras do século XX, que teve uma vida marcada por grandes tragédias. Comecei a ler Homem ao termo, livro que reúne a poesia do poeta mineiro Affonso Ávila. Outro livro já está aqui do meu lado, chegou hoje, trata-se da segunda edição de Intramuros, da poeta amazonense Astrid Cabral, querida amiga e artista de grande valor. Mas como falar das referências sem mencionar o papel fundamental da Bíblia e de As mil e uma noites?
PAULO ORTIZ – Sua poesia percorre diversas vertentes contemporâneas, com vozes das vanguardas do começo do século XX e ecos do Regionalismo modernista. Vejo dois autores que seriam seus pais espirituais nesse caminho, o misticismo entrelaçado pela cor local tanto de um Jorge de Lima como de um Guimarães Rosa. Como ocorre em você a interlocução de propostas tão modernas, seja no acaso e na quebra da lógica, no niilismo e no humor, com a tradição regional, seu vocabulário agrário e uma necessidade de experiência descritiva daquele homem inserido em tal realidade? Sabemos alguns dos segredos daqueles dois escritores nesse sentido, mas agora é sua vez de desvelar um punhado dos seus.
JIVM – Você mencionou dois escritores que são muito preciosos para mim, acrescentaria apenas outro que teve a mesma importância, o cearense Gerardo Mello Mourão. Na verdade tudo muda depois que leio o Grande Sertão: Veredas. Quase que simultaneamente li Os Peãs, de Gerardo Mello Mourão, que trazia personagens tão vigorosos quanto os do Grande Sertão. A diferença estava no trato, Gerardo pintava seus parentes com matizes bíblicos e homéricos e então o seu Alexandre Mourão era um Ulisses encourado e destemido que galopava pelas plagas dos sertões do Siarah Grande, enquanto Guimarães, inventava um Riobaldo cheio de conflitos e que despetalava a rosa de um amor terrível, ao qual não ousava dar evasão. Depois é que aparece o meu conterrâneo Jorge de Lima com A túnica inconsútil, para rezar comigo as ladainhas que estavam impregnadas em minha alma, e com Invenção de Orfeu, para desconstruir minhas certezas e derrubar minhas convicções. As interlocuções acontecem naturalmente, por eleição. Antes de ler os três escritores citados, eu já havia lido muitas outras coisas, mas foram esses que se amalgamaram ao meu ser. À época dessas leituras, eu tinha 20 anos, morava numa fazenda chamada Cerca de Pedra e à noite lia alumiado pela luz de um candeeiro. Vivia, no meu dia a dia, com o homem do campo, com o qual ainda tenho contato constante. E não é apenas a convivência com elementos do campo que determina a minha escritura, mas, sobretudo, a minha ligação com a natureza, com o Sertão. Daí um vocabulário assim campesino, daí a presença deste homem das auroras, vem daí o cantar do galo, a prosa com as estrelas e o namoro com a Lua.
PRISCILA FERNANDES – Em 50 poemas escolhidos pelo autor somos convocados a uma cavalgada por suas imagens poéticas quase que cinematograficamente. Ao ler sua poesia, é possível sentir-se hóspede desta casa dos seus quarenta anos, e experimentar a palavra como ato. Ao fazer-lhe esta visita, é impossível não notar a construção de um roteiro lírico, autobiográfico, ainda que despropositadamente, permeado por encontros tão íntimos com seu próprio Ser tão. Assim, o que surge ao final do livro é um sentimento de algo que se conclui e se inicia. O que pode nos dizer a respeito deste momento em que anuncia a calmaria? É mesmo um novo tempo? Uma nova fase/frase na sua poesia?
JIVM – Estou sempre em busca de Paz. Mesmo quando estou a brigar, é uma busca de sossego o que me move. E como é tão paradoxal numa pessoa como eu essa anunciação de Paz! Mas é a busca. E este momento da casa dos 40 anos e dos 50 poemas é a continuação do que venho fazendo desde que comecei a escrever e, claro, é uma nova fase, ainda que marcada por um retorno à obra, ainda que uma visita aos caminhos que percorri e que me percorrem a todo tempo, pelas veias do meu corpo, pelos veios de minha alma. O meu próximo livro, Pedra Só, que já está bem delineado, é uma nova fase dentro da minha frase poética, embora com o mesmo traço que me afirma.
RICARDO THADEU – Outra característica marcante nos 50 poemas é uma voz, um Eu, que emana das palavras, como se o poeta e a poesia fossem um só, ou o ser do eu poético estivesse dissolvido no ser da linguagem. Assim sendo, qual é a leitura que você faz da sua própria obra: uma consequência natural desta fusão ou uma expressão deste abismo simbólico entre você e a outra voz?
JIVM – Tudo o que eu disser aqui ou vai me comprometer ou não vai esclarecer praticamente nada. Porque eu sou eu e pronto. Mas eu não sou apenas eu, uma multidão de vozes compõe o que reconheço como EU. A poesia é arte, portanto usa de artifícios para representar a mágica do ser, para revelar a beleza do ser, para exibir a perplexidade do ser. E eu tento me banhar e me dissolver e me fundir nas águas da poesia, que é onde meu ser encontra o abrigo mais seguro e mais sincero. Mas tudo isso é uma invenção do meu sentimento. Sinto-me inventando o meu sentimento. Sinto-me inventado por meu sentimento. Na minha poesia busco percorrer, de ponto a ponto, de canto a canto, todas as plagas do abismo que me habita, sentindo o seu silêncio. A sua realização é a expressão que anuncia todas as vozes – que sinto que sinto.
VÂNIA MELO – Amores, silêncios, sertões, vermelho escarlate, vermelho fogo: o que mais habitará a casa dos seus quarenta anos, Inácio? Vi muitos de seus poemas nascendo maturis e desabrochando em musas. Maduro , você reúne, numa roda de cantorias e orações, cinquenta poemas e conversa com suas melhores experiências. Durante essa escolha e refletindo sobre você em seu fazer poético, o que melhor o traduz?
JIVM – Tudo o que a palavra possa suscitar e articular pode habitar na morada do ser. Apesar de já ter estabelecido algumas escolhas estéticas, não sou senhor de convicções. A minha escritura, portanto, está aberta para o que vier, contanto que esteja sintonizado com o meu sentimento e com o meu delírio. Estou sempre buscando a expressão que traduza a minha emoção. Tantas coisas na vida e tantas coisas do mundo me comovem, quanta poesia transborda da dor e da beleza da existência! E é este olhar poético sobre as coisas do mundo e sobre a existência que melhor me traduz. A casa dos quarenta anos que ora me habita e que ora habito é o espaço das clarezas, é o “cemitério de ilusões”. Esta antologia da casa dos quarenta anos, composta de cinquenta poemas, direciona-me também para a casa dos cinquenta, com seu tapete que de vermelho cada vez mais vai ficando rubro até traduzir-se em completa escuridão – e esta é uma clareza e uma certeza.
VITOR NASCIMENTO SÁ – Sua poesia e sua apreensão diante do cenário poético que o circunda podem ser traduzidos com um dos seus versos: “Não sei ser quase”. Quem te acompanha percebe essa ânsia pela descoberta do verso dos versos, do verso completo, essa necessidade de “todas as frases, dizê-las por inteiro”. E não há descanso na sua produção. Mas, quando chega à maturidade (porque o quinto livro obviamente tira o autor da lista dos iniciantes), em lugar de respostas, há o encontro atordoante com uma casa repleta de fantasmas, uma casa que é mais problema que solução. Parece-me que os quarenta anos lhe serviram de estaca zero e a busca pela inteireza recomeça. Essa busca é incessante? Como o Rilke, eu lhe perguntaria: você se sente forçado a escrever? Como descreve essa inquietude que leva à poesia?
JIVM – Vitor, essa pergunta traz no âmago uma explicação para o que significa o Roseiral dentro da minha produção. É um livro muito diferente dos outros, embora seja a continuação do único livro que escreverei ao longo da minha existência. Mas indiscutivelmente o Roseiral é um momento diverso que chegou simultaneamente aos meus 40 anos. E a entrada para a casa dos quarenta foi, realmente, marcada por uma mudança radical na minha escritura. Agora, com um novo trabalho intitulado Pedra Só, vejo-me retornando para a noite abismal do ser – tão comovido e emocionado com todas as possibilidades da existência. E a busca, Vitor, é incessante. A busca pelo verbo que me inaugure, pois “no princípio, era o verbo”; a busca pelo verso que me mantenha dentro da paisagem poética. Sinto-me constantemente impulsionado a escrever. Se pudesse controlar essa força que me leva para os labirintos da escrita, certamente procuraria fazer outra coisa, mas como diria o extraordinário Visconde de Valmont, personagem de As ligações perigosas: “foge ao meu controle”. Rapaz, escrevo por necessidade. O único lugar em que meu ser encontra abrigo e a minha inquietude assenta suas águas barrentas é no açude da poesia.
WENDER MONTENEGRO – Para Francisco Carvalho “o poema é talvez o caminho mais longo para a descoberta do homem. De seus píncaros ou de seus pântanos. De seus clarões ou de suas trevas.” Waly Salomão considera a poesia “a menos culpada de todas as ocupações.” Herberto Helder, outro poeta de suas referências, afirma que chegou mesmo a banir de suas preocupações a ideia de comunicação. E Baudelaire compara o poeta a um albatroz, incapaz de andar entre os homens, dado o tamanho de suas asas, metáfora para a extensão de seu voo! E para você, José Inácio Vieira de Melo, a poesia possui uma aura mística, capaz de transformar os que dela usufruem em seres especiais, à parte? O que é, afinal, o poeta e em que consiste fundamentalmente sua atividade?
JIVM – Cada poeta apresenta a sua definição de poesia, cada uma mais bonita que a outra, mas ninguém consegue dizer, na sua essência, o que seja a poesia. Os mais práticos, os homens ocupados, dizem logo que a poesia é uma fuga. E não será? Ou a poesia é o encontro abismal do ser? O próprio Francisco Carvalho diz num poema que “A poesia é uma cadela de olhos de cio/ que lambe as feridas da alma/ mas não afugenta os demônios do corpo” e diz mais neste seu “Discurso para iniciados”: “A poesia não se compraz com as tuas aflições/ não muda o rosto nem gosto das coisas”. E como isso é lindo e verdadeiro. Mas essa verdade é a do Francisco Carvalho, pelo menos enquanto ecoa o poema pela eternidade de um instante. Cada um define a poesia como sente e pode e cada qual entende como pode e sente. A poesia, para mim, é minha religião. Sou apenas um apóstolo da palavra poética. Minha missão é sair pelo mundo espalhando a graça maior da Poesia. E a poesia é sim a mágica que transforma a palavra em pão e a asa na casa do voo. É preciso ter muita força para abraçar a poesia. As pessoas que fruem a poesia são tão especiais quanto qualquer outra pessoa, nada a mais. O que as diferencia é o fato de se permitirem sentir o sabor da arte através da música das palavras, é que se deixam levar pelos delírios estéticos de outrem e penetram na paisagem criada por aquele seu igual que brinca seriamente de inventor de mundos – na maioria das vezes, para suportar a azáfama em que o mundo está metido. O poeta é o que não é. O poeta diz o que é de uma forma que não é. Seu ofício é sofrer a história e inventar estórias com as canetas da sua frustração e do seu delírio. Está certo Herberto Helder em não esperar comunicação da poesia. A poesia é uma expressão que ganha abrigo na zona de delírio que não está preocupada em compreender, mas apenas de sentir por sentir, sem explicação. Quem olha para a Lua e sente faltar chão aos pés, sentiu a poesia. Mas quem repara na lua e começa a explicá-la e racionalizá-la, será capaz de dividi-la em lotes para construção de conjuntos habitacionais. Para fim de conversa, na verdade, não sei o que é ser poeta. Apenas sou poeta.
Publicado no site: http://www.verbo21.com.br Escrito em português brasileiro
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