PATRÍCIA REIS. É esse o nome dela. É portuguesa. Se a
considerasse parte dos melhores autores contemporâneos daquele país seria no
mínimo estranho, já que a língua ainda não fez o suficiente para que moçambicanos
conheçam a actualidade da literatura portuguesa. Paramos no Eça de Queirós e
Sophia de Mello Breyner Andresen até chegamos ao Saramago, mas não fomos para
além de Herberto Hélder. Hoje sugiro que viajemos na escrita “infinita” de uma
autora vertical, que deleita-se com a escrita enquanto formada em História e
profissional de jornalismo.
Quando falamos de distância entre Moçambique e Portugal,
Patrícia Reis fica em cima do muro. Pois pisou Moçambique para além do evento
que a trouxe neste mês de Maio. Seu pai morou aqui e teve um tio que cá
residiu. A sua escrita leva-nos ao mundo, um mundo em metabolismo. Quando
viajamos nas suas obras há um mundo que se abre e há uma revelação sobre toda a
concepção que temos do nosso enredo. “O que me incomoda é a maldade. Escrevo
muito sobre a maldade. As hipótese de contaminação da maldade ou, se quiser, na
urgência de ensinar a bondade”, disse acrescentando outras palavras.
Na entrevista que se segue navegamos nessas obras, na
escrita e noutras nuances que compõem o seu eixo de vida, “porque na vida é
como uma viagem” como nos aconselha o poeta angolano Ruy Duarte.
Disse em uma
entrevista a volta do livro “No Silêncio de Deus” (2008) que foi a Amesterdão e
Israel para “pescar ideias, sinais e espaços para compor os cenários e as
emoções das personagens.” E em Maputo, o que pescou?
É sempre o mesmo processo: oiço, observo, tento perceber.
Em Amesterdão a realidade é europeia, próxima de um registo que conheço. Em
Maputo há diferenças substâncias. Mesmo a forma como é usado o idioma que nos
une – o português – é distinta. A construção frásica é outra, existem
neologismos que me arrancam sempre um sorriso. Depois da Feira Internacional do
Livro, cheguei a Lisboa com a luz do Índico, algumas histórias soltas, uma
visão da cidade que é pessoal, logo subjectiva. Trouxe ainda vontade de
regressar.
Disse ainda em
Maputo que tira muito desta cidade. Por exemplo, o transporte “my love”
tornou-se assunto para um futuro texto. Qual é o “extraordinário” no my love?
O extraordinário é dar um nome a um transporte colectivo,
não organizado, que implica afecto. Esse sentido de humor, creio, é muito
moçambicano. Tal como o sorriso. Ao mesmo tempo, é um reflexo da realidade, uma
ferramenta para encarar um trânsito caótico, as fracas possibilidades do
transporte público e de como as pessoas se organizam. Dizem que o humor é uma
grande arma. É uma arma e ainda uma forma de poder.
Já agora Maputo o
que fez em ti?
Não foi a minha primeira vez em Moçambique, como tive
oportunidade de explicar. O meu avô paterno viveu em Maputo, um dos meus tios
preferidos nasceu em Moçambique. Tenho uma cabeça de colecionadora de histórias
e o que África tem o condão de provocar é a capacidade de ficar. Ficar a ouvir.
Se é crucial ler para escrever, é essencial ouvir. Talvez seja um defeito
profissional meu, afinal sou ainda jornalista e alguém que se ocupa de relatar
acontecimentos precisa de saber ouvir. É evidente que o exercício do jornalismo
é distinto da literatura: o jornalismo deve ser a verdade. A Literatura é uma
reinterpretação de verdades.
A sua escrita
parece-me não ser consequência do acaso. Que ritual obedece para fermentar um
texto?
Não tenho ritual. Não posso dizer que viva o princípio
arrumado e organizado de tantos escritores que obedecem a uma rotina. Eu
escrevo quando preciso mesmo de escrever e não tem de ser todos os dias, não
pode ser todos os dias. A escrita é um exercício solitário e que implica
disponibilidade física e mental absoluta, um nível de concentração elevado. Eu
tenho uma vida fora da escrita, de trabalho, de família. O estar na vida faz de
mim melhor na escrita.
Formada em
História, há alguma fronteira com a tarefa de ficcionista?
Sim, a fronteira é muito real e o processo de
investigação histórica é absolutamente distinto. Dito isto, a História ajuda
muito quando se escreve ficção. A História é a memória. A ficção é a
cristalização de um determinado tempo na perspectiva de certos personagens, de
um autor em concreto.
No entanto, apesar
de tudo, encontro uma forte carga de emoção na vida dos seus personagens. Em
“Contracorpo” por exemplo, nota-se isso na relação entre Maria e Pedro. Em que
parte de mundo foi buscar as motivações dessa história?
Sou mãe de dois rapazes. Sou madrinha de outros tantos
jovens. Lembro-me muito bem da minha realidade enquanto adolescente. É um tempo
complexo para os jovens, um tempo de incompreensão. O livro não exprime a minha
relação maternal, não é um desenho dos meus filhos ou afilhados. A mãe sou eu,
o filho sou eu, a avó sou eu. É um tema universal com o qual as pessoas se
identificam muito. Costumo dizer que falar com um adolescente é o mesmo que dar
banho a um peixe. E sei ainda que a maioria dos adultos já se esqueceu da dor
desta fase de vida e não tem capacidade para ouvir ou margem de cabeça para
entender outras perspectivas. A gestão do silêncio é essencial na educação dos
adolescentes.
Dói muito até no
leitor o sofrimento destes dois pela morte do Francisco, marido da Maria e pai
do Pedro. E a autora prolongou ainda esta dor. Como ao escrever, a Patrícia
viveu essa tragédia?
Posso confessar que este livro, Contracorpo, foi um livro
sofrido. Chorei muito. Tive muitas dúvidas. Não sabia se seria eficaz, se as
duas vozes teriam a mesma força e não queria privilegiar a personagem que porventura
é mais próxima de mim, a mãe. Um livro é sempre um caminho, algo estranho.
Começa com uma frase. Nunca sei como será o fim. Muitas vezes os personagens
tomam conta. Parece quase infantil dizer que se escreve e não se controla o
livro, a história, as emoções. Mas é assim.
Como manter a
neutralidade quando se cria um personagem e num livro em geral?
Não sei se penso nisso, aliás estou certa de que não
penso em manter a neutralidade, tento levar a história a bom porto, onde a
história precisa de ir para ser mais eficaz. Não me distancio como faço num
trabalho jornalístico. Não é o que faço. Envolvo-me, crio laços de amizade, de
afecto com as personagens, preocupo-me, adoptou-as e vivo com elas durante
muito tempo.
No romance a vida
não corre em estreito. Há altos e baixos, mas também existem os próprios
desejos do autor. O que os anos de escrita e de vida transformam num escritor?
Um escritor só é o que é se for um escritor na sua
essência, se sentir essa necessidade de colocar na escrita o mundo que vê, que
não compreende, o conjunto dos seus sonhos, receios, alegrias. Vergílio
Ferreira, um grande autor português, dizia que “um romance é um biombo atrás do
qual a gente se despe.” Ao fim de algum tempo, vivemos em função da escrita, do
que queremos escrever, mas de uma forma cada vez mais intranquila, mais
perigosa. O tempo e escrita, os livros publicados, nada disso nos consola ou
reconforta, mesmo que haja, necessariamente, um treino implícito. Com a idade,
com o tempo, tudo é mais difícil. Não sei como será com outras pessoas, para
mim é assim.
Um dos elementos
que pude notar na leitura do seu texto é a tentativa de desconstrução dos
cenários comuns, como por exemplo em “Por Este Mundo Acima”. O que a incomoda
na realidade?
O que me incomoda é a maldade. Escrevo muito sobre a
maldade. As hipóteses de contaminação da maldade ou, se quiser, na urgência de
ensinar a bondade. O caso do livro “Por Este Mundo Acima” é um caso particular:
escrevi para o meu filho mais velho, hoje com 19 anos, para lhe dizer que a
vertigem do mundo através das novas tecnologias não é igual ao valor extremo da
amizade, essa melhor forma de amor. Ao mesmo tempo, observando o estado do
Planeta, calculo que todos nós tenhamos a noção de que a vida de todos os dias,
nos mais de duzentos países que existem, é dura. A noção de direitos humanos é
relativa. As condições básicas de vida são diminutas para uma parte
significativa da população mundial. Os conflitos armados são contínuos. A
medicina progrediu, contudo as doenças não desaparecem, pelo contrário. E
podíamos continuar aqui a relembrar as evidências do mal que nos assaltam
diariamente. Tudo me preocupa e me entristece e me leva a fazer perguntas. São
as perguntas que me conduzem à escrita.
Para além dos
livros, há uma jornalista. Como consolidar as duas práticas?
Creio que já respondi anteriormente, todavia posso
acrescentar que o jornalismo que pratico hoje é quase inexistente, já não estou
numa redação de jornal há muito tempo e a relação sistemática que tenho, com o
semanário Expresso, é ao nível da curta ficção. Uma das vertentes do jornalismo
de que mais gosto são as entrevistas e essas, felizmente, ainda as vou fazendo.
Tenho saudades de fazer reportagem, é certo, mas fiz muitas e vivi muito
intensamente a profissão. Teve o seu tempo.
Depois de
lançados, qual é a sua relação com os seus livros?
Não é uma relação fácil. Não volto a ler. Não quero ter
essa experiência de ser estrangeira ao texto agora em forma de livro. Custa-me.
Sei que é quase infantil esta rejeição, mas sempre foi assim.
A questão de
qualidade literária vai sendo cada vez levantada quando se fala de novos
autores. Que entendimento tem das publicações dos jovens escritores?
Os jovens autores têm de criar o seu espaço. Autores
consagrados já foram jovens autores. O que acontece é que foram jovens, muitas
vezes, em tempos históricos complicados e, muitas vezes, não reconhecem nos
jovens de hoje a pertinência do que escrevem. Não existe uma Literatura
Universal se a roda não girar. É preciso respeitar e ler os mais velhos;
respeitar e ler os mais novos. Cada qual no seu patamar, mas sempre qualquer
conflito na co-existência.
O que pensa do
Portugal e do mundo actual? E como é que a literatura pode servir-se destes
tempos?
Vivemos todos tempos de crise. Crise financeira, de
valores, moral, de ideias, cultural. O tempo, o meu tempo, sempre foi pautado
por essa palavra: a crise. Aprendi a tentar driblar a realidade, nunca
desistir, falhar e depois falhar melhor. A literatura contemporânea reflete
isto mesmo, o que vivemos e como vivemos, pela simples razão de que os
escritores são quem fixa os tempos que vivem, as pequenas nuances, os receios
menos explícitos. São como pequenos historiadores da História pequena.
O que aconselha a
ler um aspirante a escrita?
Tudo. Ficção, banda desenhada, mistério, ficção
científica, jornais, biografias. Poesia. A poesia pode mudar o mundo.
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