Se por um lado, nas sociedades contemporâneas, pessoas de diversas origens
e orientações alegram-se, gritam, celebram, por outro, algumas são açoitadas
por inúmeras crises: uivam, lamentam, clamam por apoio mas infelizmente ninguém
lhes ouve. Por isso, na sua solidão, engendram grandíloquas revoltas. É a par
desta realidade que se edifica uma sociedade deprimida e psicopata. Psicose
4:48, a obra teatral encenada por Maria Atália, pode ser um ponto de vista
(válido) sobre o modus vivendi dos moçambicanos.
A obra que já foi exibida em Maputo é inspirada no monólogo com o mesmo
título escrito por Sarah Kane, a dramaturga inglesa, a qual se adaptou para a
realidade moçambicana.
Verdadeira manifestação de arte que é, em Psicose 4: 48 encontram-se
inúmeras crises vividas por uma mulher que é interpretada pela jovem actriz
moçambicana Violeta Mbilale. A personagem, uma representação social da vida
real e da irreal, encarna um conjunto de transformações que a colocam nos
interstícios da sanidade mental e da demência. Diante das cenas da peça,
imediatamente recordamo-nos da realidade urbana narrada pelo célebre escritor
moçambicano, Marcelo Panguana, na sua obra Como Um Louco ao Fim da Tarde.
A prevalência de pessoas humanas num espaço social, como Moçambique, em que
a busca desenfreada pelo dinheiro debilitou os demais valores morais e sociais
a favor de intrigas, contendas, criminalidade e inveja: “como garantir a
sobrevivência? Onde e como adquirir víveres?”, duas questões cuja sua
(re)formulação é constantemente premente.
A escassez de víveres, a crise alimentar, além de um clima de insatisfação
social, de revolta, de perseguições, fecundou uma série de psicopatias e vícios
no espaço social: há demasiada criminalidade, as pessoas prostituem- se para
garantir o pão de cada dia, o desespero glori ficou o consumo de drogas como um
método de aliviar a pressão do custo de vista.
Quantas vezes a intolerância dos Homens entre si – como, por exemplo, o
caso dos transportadores públicos em Maputo – não resulta em incidentes?
Diariamente, os cidadãos maputenses fazem-se à rua com alguma preocupação na
mente – escassez do tempo para as suas actividades, falta de emprego e bens
materiais, por exemplo –, o que faz com que muitos deles, se não contratam os
serviços de alguns médicos tradicionais a fim de garantirem algum sucesso nas
suas buscas, associam-se às diversas formações religiosas que modi ficaram
completamente o cenário da capital.
O que se pretende considerar é que, quer Marcelo Panguane, quer Maria
Atália – nas suas obras, apesar de diferentes – falam sobre Moçambique. Um
aspecto peculiar é que em relação à actriz Atália, a obra Psicose 4: 48
assinala a sua aprendizagem na sua formação teatral, ao mesmo tempo que lhe
confere a primeira aparição pública no fim do curso.
De uma ou de outra forma, se tomarmos em consideração que Psicose 4: 48 é
uma obra que originariamente aborda a sociedade ocidental, é natural que se
questione a relação que existe entre a mesma e Moçambique.
“O ocidente, como espaço social, percorre-me a mente já há bastante tempo.
Residiu em mim até que surgiu esta vontade de partilhar a minha experiência com
os outros. Capitalizei os fragmentos da vida europeia com os quais me identifiquei
como moçambicana”, diz ao mesmo tempo que adverte: “não estou a retratar a vida
de todos os moçambicanos. Qualquer pessoa que vir a peça certamente que se
identificará com alguma passagem. Além do mais todos nós temos um pouco de
depressão, de amor por dar, de alguma carência em termos de afecto, o que não
significa que todos os nosso dias sejam cheios de problemas e/ou de sucessos”.
Um encontro com a Psicose
De acordo com a encenadora, a sua relação com a obra Psicose 4: 48 existe
há mais de um ano. No entanto, a sua encenação ocorreu em apenas duas semanas,
o que em grande parte só foi possível como resultado da exibilidade da actriz
Violeta Mbilale.
De uma ou de outra forma, se considerarmos que a personagem que interpreta
a Psicose 4: 48 é quase louca, também é natural que se questione a reacção de
Violeta quando soube que se tinha que tornar numa demente.
É que ela, a actriz, devia rapar o cabelo – o que logo à partida era
impensável –, segundo, conviver com pessoas com distúrbios mentais, por
exemplo, condições perante as quais Violeta não se mostrou favorável a
adoptá-las. Aliás, não lhe faltaram argumentos: “temo pela minha saúde mental
depois de realizar esta obra”, disse Mbilale.
Para convencer a artista de que era capaz de interpretar a obra Psicose –
nas condições predefinidas – Maria Atália explica o ritual por si inventado:
“tivemos inúmeras sessões de leitura do texto; visitámos os locais frequentados
por pessoas que padecem de psicoses; paulatinamente, além de enraizar em si as
regras do jogo deu-se conta de que era capaz levá-la a cabo”.
Há quem acredita que encenar a peça de Sarah Kane, por Maria Atália, é como
se fosse um encontrou com ambas as artistas. A par disso, Maria Atália
recorda-se de que durante a sua formação em Teatro, um dos seus professores
considerava que ela uma tinha uma peculiar forma de percepção teatral que lhe
recordava Sarah Kane, o que “o moveu a aconselhar-me a ler as suas obras”.
Afinal, de facto, “existia algo em comum entre nós. Cada vez que eu lesse
um texto da sua autoria, ia-me identificando cada vez mais com a dramaturga”,
realça Atália.
Refira-se que Sarah Kane, que encontrou a morte em 1999, com apenas 28
anos, por enforcamento – sofreu de depressão tendo sido internada por duas
vezes em hospitais psiquiátricos até que tentou suicidar-se – é considerada a mãe
do caos, ao mesmo tempo que, geralmente, as personagens das suas obras são
caracterizadas como psicologicamente profundas com imagens agressivas e
chocantes, o que em último grau valeu-lhe o título de maior dramaturga inglesa
do século XX.
Foi desse modo que a relação entre a Sarah e Atália foi construída de modo
que, na altura de realizar a sua monografia, Teatralização do Ritual, Maria
Atália, com uma enorme base teórica, se questionou: “porque não trabalhar com a
obra de Sarah Kane se ela possui uma série de criações com profundas
semelhanças em relação ao meu universo ritualístico?”
Com a decisão tomada, a encenadora colocou as mãos à obra: no interior da
província de Maputo, escolheu o distrito de Marracuene, onde procurou
essencialmente compreender os rituais das povoações locais com particular
destaque para as pessoas que padecem de psicose.
“Os resultados eram animadores e satisfatórios. De cada vez que eu falasse
com alguém ou visse uma pessoa com uma manifestação de psicose, a minha vontade
de perceber a manifestação evoluía continuamente”, comenta.
Relativamente à Psicose 4: 48, a produção explica que “a fala seca,
precisa, por vezes gutural, funciona como extensão deste ´corpo` cuja voz e
discurso são explorados até à exaustão.
As identidades desfeitas ou não fixas também são características presentes
neste espectáculo, em que o lugar donde a voz fala é constantemente
desestabilizado”, ao passo que “o tempo (...) é tratado ora de modo impreciso,
ora obedecendo a um ritmo rigoroso, é desconstruído por elementos diversos como
a repetição, a desarticulação da fala, as respirações pontuadas, os gritos
quase demoníacos, etc. O espaço também instável é igualmente violentado e ganha
mobilidade”.
Na cena da obra, o problema da mulher que padece de psicose é que ela
carece de afecto, precisa de alguém que se aproxime de si e, pior ainda, possui
uma dupla personalidade. Vezes sem conta, ela discute com uma figura masculina
que se apossou do seu corpo dirigindo o seu comportamento. “Nós, em Moçambique,
temos pessoas com essas dificuldades”, comenta Atália acrescentando que o
lamentável é que nem sempre a psicose é percebida.
No entanto, ao abrigo do trabalho que realizou no contexto da sua pesquisa
em Marracuene, Maria Atália introduz um novo aporte sobre a psicose: há um
fenómeno chamado Ku Tsameliwa que se manifesta sempre que uma mulher é dominada
por espíritos demoníacos os quais repelem os homens que se aproximam de si para
manterem relações eróticas. “Muitos desses casos têm motivado os homens a
abandonar as mulheres”, considera Atália.
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