terça-feira, 12 de outubro de 2010

Conferência Nacional sobre a Reforma do Sistema Prisional


Debate sobre penas alternativas diverge opiniões


Reportagem de Eduardo Quive
Foto de Rogério Manhique

(jornal Escorpião)

O Ministério da Justiça está preocupado com a situação de pessoas em conflito com a lei e que, por razões de pobreza não conseguem pagar as multas definidas pelos tribunais por consequência acabando de ficar por muito tempo nas cadeias. Esta posição foi defendida pelo Serviço Nacional das Prisões (SNAPRI), a margem da Conferência Nacional sobre a Reforma do Sistema Prisional moçambicano realizado há dias na capital do país. Para o SINAPRI, o Governo deve criar condições para que os pobres não fiquem na cadeia por falta de dinheiro para pagar as multas. Por um lado, os juízes consideram que as penas alternativas não podem constituir a causa número um desta reforma pois a medida demonstra do lado do governo haver preocupação de tirar os presos da cadeia para “ para se livrar deles”.

Durante dois dias a Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH) em parceria com o Ministério da Justiça, reuniu-se na capital do país com peritos na área da Justiça em especial os ligados a área prisional, doadores do governo e diversas organizações da sociedade civil para uma Conferência Nacional sobre a Reforma do Sistema Prisional no país. O evento teve como lema “ Repensando sobre a Reforma Prisional em Moçambique”.
A abertura da conferência foi dirigida pelo Primeiro-Ministro, Aires Aly, que disse na ocasião que o Plano Quinquenal do governo ora em execução prevê o desenvolvimento de um sistema prisional que dê enfoque à prevenção do crime, recuperação dos infractores e sua educação.
Aires Aly, reafirmou que os esforços do executivo é de modificar a face que o actual sistema prisional nacional apresenta, cujo mesmo, é considerado um dos mais violadores dos Direitos Humanos.
A desumanidade nas prisões é o principal motivo das reformas - defende a LDH
O Serviço Nacional de Prisões (SNAPRI), encabeçado pelo seu porta-voz, Samo Gonçalves, fez a apresentação do funcionamento das cadeias nacionais, no sentido de explicar a necessidade de se fazer a reforma ora debatida.
“A lei que vigora, para gerir o sistema prisional nacional, é da era colonial, e foi instituído sob o decreto-lei número 26.643 de 28 de Maio de 1936, e o conteúdo que contém, já passou da funcionalidade, uma vez, a realidade no presente, mostrar outra situação”, explicou Samo Gonçalves. O mesmo explicou ainda que, esta situação do desenquadramento da lei em relação ao tempo actual é pior porque, “o país está independente e o número de pessoas que cometem crimes aumentou sendo que as cadeias construídas naquela época actualmente não suportam o número de reclusos que o país ostenta.”
Acrescentou que, “esta lei, previa a existência de uma cadeia em cada província, cujo reclusos teriam penas não superiores a 3 meses, ocupando cada um, um espaço de cerca de 6 metros, mas agora o mesmo espaço é partilhado por mais de 10 reclusos. Para as cadeias centrais, estava previsto que servissem para reclusos com penas de 3 meses a 2 anos, mas agora até os de mais de 20 estão lá. O factor não só é este como também as poucas cadeias que existiam na altura, após a independência foram transformadas em centros de formação profissional.”
Na sua longa explanação Samo Gonçalves fez saber que, só em 1994, depois da estabilidade, começou a reflectir-se sobre este problema, tendo já criado medidas para as possíveis soluções, e por conseguinte introduzido Centros Prisionais Abertos, para atenuar o sofrimento dos reclusos, mas em termos de infra-estruturas ainda nada foi feito.”
No meio das verdades que poucas vezes apareceram publicamente Gonçalves elucidou que, “ em 2006, criou-se o SNAPRI, uma instituição, que unificaria todas as unidades envolvidas na gestão das cadeias, para além de proceder com as respectivas reformas, indo ao encontro das normas estabelecidas pelas Nações Unidas e pelos Direitos Humanos.”
“ Estas mudanças visavam a preparação do terreno para a implementação das fazes subsequentes da reforma prisional, como as medidas de penas alternativas, as condições de reclusão, a informatização e a capacitação dos técnicos deste sistema. Esta reforma, visa criar novas leis que facilitem a vida do recluso e as condições que as prisões nacionais apresentam. Daí, ter-se-á aprovado, a Política Prisional e a Estratégia da sua Implementação.”
No entender de Samo Gonçalves, uma das partes privilegiadas deste processo, são os reclusos, uma vez estarem previstos no plano desta reforma que se criem penas alternativas, como uma das medidas para eliminar as superlotações nas prisões.

Por seu turno a Liga dos Direitos Humanos, procedeu a apresentação do relatório que contém a realidade do Sistema Prisional moçambicano, baseado naquilo que é a visão da sociedade civil, dos reclusos e em pesquisas feitas nas cadeias nacionais.
O relatório apresentado pelo porta-voz da LDH Luís Bitone, diz que a situação prisional é crítica e está caracterizada pela superlotação, más condições de higiene e saúde, tortura, baleamentos e outras formas de tratamento desumano e que carecem de ser eliminados.
Para citar exemplos, que constam do mesmo documento a ser lançado oficialmente no próximo ano e que o Escorpião teve acesso, diz que nalgumas penitenciárias, o número de presos ultrapassa o triplo da sua capacidade.
Dados recolhidos pela LDH nas cadeias de Inhambane indicam que a cadeia provincial, concebida para 75 reclusos, alojava, até Agosto último, 276 reclusos, ou seja, acima do triplo da sua capacidade. Um pouco por todo país, a situação é semelhante. Na Cadeia Central de Maputo, por exemplo, onde devia estar no máximo 800 reclusos, Setembro passado estavam 2.538 reclusos, mais do que o triplo da sua capacidade.
Em Gondola, na Província de Manica, a cadeia distrital contava, recentemente, com 65 reclusos mais do que o dobro da sua capacidade que é de 30. O mesmo verifica-se no distrito de Moatize, em Tete, onde a cadeia com capacidade de albergar 25 reclusos, aloja 61, isto é, também acima do dobro do seu limite.
Já em Maputo, a Cadeia de Máxima Segurança (B.O) a capacidade não deve exceder a 400 reclusos mas até finais de Outubro último albergava 836. Em todos estes casos, os reclusos são muitas vezes sujeitos a dormir na casa de banho e em pé, ou então por escala, tudo por falta de espaço o que o atenta contra os direitos dos reclusos.
“Aspectos ligados a Saúde e higiene nas prisões, as condições são deploráveis e verifica-se em algumas cadeias do país que reclusos doentes e não doentes sejam sujeitos a partilhar o mesmo espaço, ou que reclusos padecendo de doenças diferentes e até contagiosas estejam na mesma cela. Na Cadeia Provincial de Nampula testemunhámos esta convivência. Doentes de malária, tuberculose, sarna e anemia dormiam juntos na mesma cela.”
A LDH entende no seu relatório que, a flexibilidade dos Tribunais continua aquém das expectativas da sociedade moçambicana. As cadeias permanecem repletas de reclusos cujos prazos de detenção aspiraram. A LDH tem registo de casos de reclusos que se encontram detidos há mais de 1 ano, sabido que de acordo com o 1º, 2º e 3º pontos do nº 1 do artigo 308 do Código de Processo Penal Moçambicano, o prazo de prisão preventiva não deve exceder 90 dias. O ponto 1º e 2º, do nº 2 do mesmo artigo sustentam respectivamente que mesmo se à infracção couber pena a que corresponda processo correccional ou de querela, a prisão preventiva não deverá ultrapassar quatro meses. Porém, a Cadeia Civil de Maputo é um exemplo inegável, diz ainda o relatório.

“O Estado quer livrar-se dos reclusos” – afirma Dário Ossumane


Esta posição foi por muitas vezes defendida por alguns juristas, a aperceberem-se que a implementação das medidas alternativas de cumprimento de penas, estavam no auge dos debates na conferência, tendo por muitas vezes causado reacções pouco confortáveis de alguns participantes.
A ideia de que o Estado quer livrar-se dos reclusos, foi apontada pelo Juiz Criminal de Manica, Dário Ossumane, considerando que a reforma do Sistema Prisional passa por rectificar e a revogação das antigas e promulgar-se novas leis, que tragam no seu conteúdo as novas medidas que se pretende que sejam aplicadas e que as mesmas precisam de ser acompanhadas por uma cultura de aplicação das leis.
“Se haver necessidade de se fazer a reforma, que se faça, mas não podemos pensar logo nas penas alternativas, porque essa é uma outra parte e que podia ficar para depois. No meu entender, há uma pressa de se soltar os presos da cadeia, uma vez estes representarem um custo para o governo. Por isso dentre várias questões que esta reforma podia-se centrar, fala-se mais das penas alternativas, mas mesmo agora, elas existem, pois, o cidadão pode ser condenado, por exemplo 2 meses de prisão, mas a sua pena é revertida em uma multa e existem também as suspensões de penas, coisas que não se aplicam muito no país.”
Por outro lado, este juiz realça a questão de fundos que implicam esta reforma sendo que neste momento o orçamento estipulado para esta área, é de 350 mil meticais, valor considerado baixo e insuficiente mas o governo pouco fala disso.
“Fazer a reforma, implica dinheiro, e pelo que saiba o governo não tem dinheiro para implementar algumas medidas que quer introduzir. As penas alternativas que tanto se falam significam por exemplo, que um recluso pode cumprir a pena em liberdade. Mas quem vai controlar este cidadão? Mesmo agora existem presos em liberdade condicional, mas o governo, pouco tem informações sobre a vida e a conduta deles na sociedade!”
“ Podemos dar a liberdade condicional a um recluso em Manica, depois ele vai a Cabo Delgado comete um crime, depois este é julgado e condenado, mas não se tem a informação sobre os seus antecedentes!” rematou Ossumane para depois acrescentar que “isto implica que o governo deve informatizar as prisões, de modo que haja uma base de dados, onde se vai buscar em qualquer parte do país, a informação sobre o estado criminal de um cidadão. Igualmente o governo deve adoptar uma estratégia de controlo de um recluso, fora da prisão, em fim precisa de uma série de coisas que por sua vez, vão requerer muito dinheiro. A pergunta inquietante é: onde se vai arranjar tanto dinheiro para tal?”
Em resposta a esta questão, o director geral da SNAPRI, Eduardo Mussanhane, que havia se colocado nos bastidores deste assunto, esclareceu que “as penas alternativas, são principalmente para ajudar o cidadão e evitar que pessoas com crimes não muito graves, se misturem com perigosos cadastrados.”
Mussanhane, para dar ênfase a sua defesa de que o governo não quer livrar-se dos presos, explicou que “existem sim as penas revertidas em multas, mas vamos supor que o cidadão ora multado, não tem dinheiro para pagar; o que será feito dele? Com certeza vai ter que cumprir a pena na cadeia porque não tem dinheiro! Não podemos permitir que a situação da pobreza em que os cidadãos se encontram os façam cumprir penas leves, pois, podemos deixar a fazerem algum trabalho com rendimento, para depois pagar a sua multa.”
“ Há muitos cidadãos que mesmo depois de sair da cadeia devem pagar outras taxas ao tribunal, de novo voltará a prisão, mesmo depois de cumprir a pena, só porque não teve dinheiro para pagar alguns emolumentos” referiu o director do SNAPRI.



“Finalmente o Estado demonstra interesse de resolver problemas das prisões”

Em entrevista exclusiva ao Escorpião, Isabel Rupia, membro do Conselho Superior de Magistratura Judicial, considerou a atitude da sociedade civil, de realizar e participar activamente nesta reforma do Sistema Prisional, de corajosa e salienta que tendo contado com uma alta participação dos membros do governo, tais como o Primeiro Ministro, Aires Aly, Procurador Geral da República, Augusto Paulino, a Ministra da Justiça e seu Vice Benvida Levy e Alberto Nkutumula respectivamente dentre outros quadros do governo, demonstra-se que finalmente, o Estado pretende resolver, de uma vez por todas este problema.
Rupia, considera de certa forma que a realização desta conferência constitui uma pressão ao governo pelas atrocidades que a lei comete nos cuidados aos reclusos, como as torturas, as más condições de reclusão, e outras violações dos direitos humanos.
“Depois desta conferência pode se demonstrar a preocupação de todos sobre este problema e com as diferentes intervenções se pode aperceber que de facto a sociedade civil está preocupada com o que está a acontecer no país, em relação as violações dos Direitos Humanos e por isso congratulo a LDH pela coragem de colocar a verdade nas mãos do governo.”
“No entanto, para que isto se torne real, é preciso que se tomem medias legislativas e aqui foi reforçado que sem que haja a reforma legal, sem que haja leis, a legislação anterior que já está ultrapassada, nada disto pode acontecer.”
Por outro lado, esta magistrada, comentou sobre a posição dos Juízes em relação as medidas de penas alternativas, uma vez estas terem ganho maior destaque nesta conferência.
“Os magistrados, os juízes e o Ministério Publico estão para aplicar a lei, para tal é necessário que os magistrados proponham as leis e que por sua vez a Assembleia da República as aprove e depois de vários debates podemos ver que os magistrados querem engrenar nesta causa, nós também nos preocupamos quando um indivíduo que tenha praticado um crime leve fique na cadeia por 6 meses ou 1 ano, enquanto podia prestar serviços comunitários por 1 mês.” Disse Rupia.
Acrescentou que, “para que as tais medidas se tornem possíveis é importante que se tenha em conta que agora vive-se a globalização e que Moçambique acredite na viabilidade deste processo.”

Penas alternativas reduzem custos – considera representante da ONU


Márcia Alencar do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), considera que a sociedade moçambicana deve aprender as outras formas de responsabilizar, castigar e penalizar cidadãos que cometem alguma infracção e também ter a noção de que envolver para trabalhos comunitários pessoas que cometem erros, pode ser benéfico pois a comunidade pode ser um mecanismo para consciencializa-los.
“Os crimes mais leves não precisam e não justificam os custos económicos e sociais das reclusões que são muito altos, o mais importante, é que a sociedade moçambicana, com a sua generosidade e solidariedade para com os seus concidadãos é que dê oportunidade para esses cidadãos que não são perigosos se reabilitarem em outras condições.”
“Nós estamos aqui como Nações Unidas e através da minha experiência, vamos poder facilitar, contribuir, colaborar, apoiar todas as iniciativas, com a cooperação queremos que as condições da sociedade civil sejam cada vez humanas.”


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