segunda-feira, 29 de junho de 2015

PATRÍCIA REIS: O ESTAR NA VIDA FAZ DE MIM MELHOR NA ESCRITA

PATRÍCIA REIS. É esse o nome dela. É portuguesa. Se a considerasse parte dos melhores autores contemporâneos daquele país seria no mínimo estranho, já que a língua ainda não fez o suficiente para que moçambicanos conheçam a actualidade da literatura portuguesa. Paramos no Eça de Queirós e Sophia de Mello Breyner Andresen até chegamos ao Saramago, mas não fomos para além de Herberto Hélder. Hoje sugiro que viajemos na escrita “infinita” de uma autora vertical, que deleita-se com a escrita enquanto formada em História e profissional de jornalismo.



Quando falamos de distância entre Moçambique e Portugal, Patrícia Reis fica em cima do muro. Pois pisou Moçambique para além do evento que a trouxe neste mês de Maio. Seu pai morou aqui e teve um tio que cá residiu. A sua escrita leva-nos ao mundo, um mundo em metabolismo. Quando viajamos nas suas obras há um mundo que se abre e há uma revelação sobre toda a concepção que temos do nosso enredo. “O que me incomoda é a maldade. Escrevo muito sobre a maldade. As hipótese de contaminação da maldade ou, se quiser, na urgência de ensinar a bondade”, disse acrescentando outras palavras.
Na entrevista que se segue navegamos nessas obras, na escrita e noutras nuances que compõem o seu eixo de vida, “porque na vida é como uma viagem” como nos aconselha o poeta angolano Ruy Duarte.    

Disse em uma entrevista a volta do livro “No Silêncio de Deus” (2008) que foi a Amesterdão e Israel para “pescar ideias, sinais e espaços para compor os cenários e as emoções das personagens.” E em Maputo, o que pescou?
É sempre o mesmo processo: oiço, observo, tento perceber. Em Amesterdão a realidade é europeia, próxima de um registo que conheço. Em Maputo há diferenças substâncias. Mesmo a forma como é usado o idioma que nos une – o português – é distinta. A construção frásica é outra, existem neologismos que me arrancam sempre um sorriso. Depois da Feira Internacional do Livro, cheguei a Lisboa com a luz do Índico, algumas histórias soltas, uma visão da cidade que é pessoal, logo subjectiva. Trouxe ainda vontade de regressar.

Disse ainda em Maputo que tira muito desta cidade. Por exemplo, o transporte “my love” tornou-se assunto para um futuro texto. Qual é o “extraordinário” no my love?
O extraordinário é dar um nome a um transporte colectivo, não organizado, que implica afecto. Esse sentido de humor, creio, é muito moçambicano. Tal como o sorriso. Ao mesmo tempo, é um reflexo da realidade, uma ferramenta para encarar um trânsito caótico, as fracas possibilidades do transporte público e de como as pessoas se organizam. Dizem que o humor é uma grande arma. É uma arma e ainda uma forma de poder.

Já agora Maputo o que fez em ti?
Não foi a minha primeira vez em Moçambique, como tive oportunidade de explicar. O meu avô paterno viveu em Maputo, um dos meus tios preferidos nasceu em Moçambique. Tenho uma cabeça de colecionadora de histórias e o que África tem o condão de provocar é a capacidade de ficar. Ficar a ouvir. Se é crucial ler para escrever, é essencial ouvir. Talvez seja um defeito profissional meu, afinal sou ainda jornalista e alguém que se ocupa de relatar acontecimentos precisa de saber ouvir. É evidente que o exercício do jornalismo é distinto da literatura: o jornalismo deve ser a verdade. A Literatura é uma reinterpretação de verdades.

A sua escrita parece-me não ser consequência do acaso. Que ritual obedece para fermentar um texto?
Não tenho ritual. Não posso dizer que viva o princípio arrumado e organizado de tantos escritores que obedecem a uma rotina. Eu escrevo quando preciso mesmo de escrever e não tem de ser todos os dias, não pode ser todos os dias. A escrita é um exercício solitário e que implica disponibilidade física e mental absoluta, um nível de concentração elevado. Eu tenho uma vida fora da escrita, de trabalho, de família. O estar na vida faz de mim melhor na escrita.


Formada em História, há alguma fronteira com a tarefa de ficcionista?
Sim, a fronteira é muito real e o processo de investigação histórica é absolutamente distinto. Dito isto, a História ajuda muito quando se escreve ficção. A História é a memória. A ficção é a cristalização de um determinado tempo na perspectiva de certos personagens, de um autor em concreto.

No entanto, apesar de tudo, encontro uma forte carga de emoção na vida dos seus personagens. Em “Contracorpo” por exemplo, nota-se isso na relação entre Maria e Pedro. Em que parte de mundo foi buscar as motivações dessa história? 
Sou mãe de dois rapazes. Sou madrinha de outros tantos jovens. Lembro-me muito bem da minha realidade enquanto adolescente. É um tempo complexo para os jovens, um tempo de incompreensão. O livro não exprime a minha relação maternal, não é um desenho dos meus filhos ou afilhados. A mãe sou eu, o filho sou eu, a avó sou eu. É um tema universal com o qual as pessoas se identificam muito. Costumo dizer que falar com um adolescente é o mesmo que dar banho a um peixe. E sei ainda que a maioria dos adultos já se esqueceu da dor desta fase de vida e não tem capacidade para ouvir ou margem de cabeça para entender outras perspectivas. A gestão do silêncio é essencial na educação dos adolescentes.

Dói muito até no leitor o sofrimento destes dois pela morte do Francisco, marido da Maria e pai do Pedro. E a autora prolongou ainda esta dor. Como ao escrever, a Patrícia viveu essa tragédia?
Posso confessar que este livro, Contracorpo, foi um livro sofrido. Chorei muito. Tive muitas dúvidas. Não sabia se seria eficaz, se as duas vozes teriam a mesma força e não queria privilegiar a personagem que porventura é mais próxima de mim, a mãe. Um livro é sempre um caminho, algo estranho. Começa com uma frase. Nunca sei como será o fim. Muitas vezes os personagens tomam conta. Parece quase infantil dizer que se escreve e não se controla o livro, a história, as emoções. Mas é assim.

Como manter a neutralidade quando se cria um personagem e num livro em geral?
Não sei se penso nisso, aliás estou certa de que não penso em manter a neutralidade, tento levar a história a bom porto, onde a história precisa de ir para ser mais eficaz. Não me distancio como faço num trabalho jornalístico. Não é o que faço. Envolvo-me, crio laços de amizade, de afecto com as personagens, preocupo-me, adoptou-as e vivo com elas durante muito tempo.

No romance a vida não corre em estreito. Há altos e baixos, mas também existem os próprios desejos do autor. O que os anos de escrita e de vida transformam num escritor?
Um escritor só é o que é se for um escritor na sua essência, se sentir essa necessidade de colocar na escrita o mundo que vê, que não compreende, o conjunto dos seus sonhos, receios, alegrias. Vergílio Ferreira, um grande autor português, dizia que “um romance é um biombo atrás do qual a gente se despe.” Ao fim de algum tempo, vivemos em função da escrita, do que queremos escrever, mas de uma forma cada vez mais intranquila, mais perigosa. O tempo e escrita, os livros publicados, nada disso nos consola ou reconforta, mesmo que haja, necessariamente, um treino implícito. Com a idade, com o tempo, tudo é mais difícil. Não sei como será com outras pessoas, para mim é assim.


Um dos elementos que pude notar na leitura do seu texto é a tentativa de desconstrução dos cenários comuns, como por exemplo em “Por Este Mundo Acima”. O que a incomoda na realidade?
O que me incomoda é a maldade. Escrevo muito sobre a maldade. As hipóteses de contaminação da maldade ou, se quiser, na urgência de ensinar a bondade. O caso do livro “Por Este Mundo Acima” é um caso particular: escrevi para o meu filho mais velho, hoje com 19 anos, para lhe dizer que a vertigem do mundo através das novas tecnologias não é igual ao valor extremo da amizade, essa melhor forma de amor. Ao mesmo tempo, observando o estado do Planeta, calculo que todos nós tenhamos a noção de que a vida de todos os dias, nos mais de duzentos países que existem, é dura. A noção de direitos humanos é relativa. As condições básicas de vida são diminutas para uma parte significativa da população mundial. Os conflitos armados são contínuos. A medicina progrediu, contudo as doenças não desaparecem, pelo contrário. E podíamos continuar aqui a relembrar as evidências do mal que nos assaltam diariamente. Tudo me preocupa e me entristece e me leva a fazer perguntas. São as perguntas que me conduzem à escrita.

Para além dos livros, há uma jornalista. Como consolidar as duas práticas?
Creio que já respondi anteriormente, todavia posso acrescentar que o jornalismo que pratico hoje é quase inexistente, já não estou numa redação de jornal há muito tempo e a relação sistemática que tenho, com o semanário Expresso, é ao nível da curta ficção. Uma das vertentes do jornalismo de que mais gosto são as entrevistas e essas, felizmente, ainda as vou fazendo. Tenho saudades de fazer reportagem, é certo, mas fiz muitas e vivi muito intensamente a profissão. Teve o seu tempo.

Depois de lançados, qual é a sua relação com os seus livros?
Não é uma relação fácil. Não volto a ler. Não quero ter essa experiência de ser estrangeira ao texto agora em forma de livro. Custa-me. Sei que é quase infantil esta rejeição, mas sempre foi assim.

A questão de qualidade literária vai sendo cada vez levantada quando se fala de novos autores. Que entendimento tem das publicações dos jovens escritores?
Os jovens autores têm de criar o seu espaço. Autores consagrados já foram jovens autores. O que acontece é que foram jovens, muitas vezes, em tempos históricos complicados e, muitas vezes, não reconhecem nos jovens de hoje a pertinência do que escrevem. Não existe uma Literatura Universal se a roda não girar. É preciso respeitar e ler os mais velhos; respeitar e ler os mais novos. Cada qual no seu patamar, mas sempre qualquer conflito na co-existência.

O que pensa do Portugal e do mundo actual? E como é que a literatura pode servir-se destes tempos?
Vivemos todos tempos de crise. Crise financeira, de valores, moral, de ideias, cultural. O tempo, o meu tempo, sempre foi pautado por essa palavra: a crise. Aprendi a tentar driblar a realidade, nunca desistir, falhar e depois falhar melhor. A literatura contemporânea reflete isto mesmo, o que vivemos e como vivemos, pela simples razão de que os escritores são quem fixa os tempos que vivem, as pequenas nuances, os receios menos explícitos. São como pequenos historiadores da História pequena.

O que aconselha a ler um aspirante a escrita?

Tudo. Ficção, banda desenhada, mistério, ficção científica, jornais, biografias. Poesia. A poesia pode mudar o mundo. 

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