sábado, 5 de fevereiro de 2011

O homem que partiu mas nunca foi embora


Capa da Semana, Jornal O País.
Por vezes, os cenários transformam-se e os homens sentem-se obrigados a partir para recomeçarem o sonho. Muitos vão embora, mas permanecem espiritualmente onde partiram. Costa Neto faz parte desses homens, tal como atesta o seu disco “Mandjólò”.


 Ouvíamos as músicas do seu álbum “Mandjólo” e voltámos para a sala de Stewart Sukuma, onde Costa Neto nos esperava dedilhando uma viola como quem está a queimar tempo. Na entrada, ouvia-se a conversa animada entre os dois músicos, enquanto uma TV ligada ajudava-os também a quebrar o silêncio. Costa Neto, com um falar quase lendo de quem pondera cada palavra para não cometer erros, sai facilmente da música para questões sociais, mas deixando uma ideia que o interesse é a promoção de cultura. Pode-se descobrir essa tendência em “Mandjólò”, onde também declara “amor pela terra” e vai buscar “a va sati va lomo” ao jeito de Fanny Mpfumo, mas com um leve toque a jazz. Ele faz essas viagens. O fez também com a cabo-verdiana Sara Tavares, a quem confessa uma “relação amigável”, que o fez convidá-la para uma música.

Cantar com Sara Tavares foi uma forma de internacionalizar a sua música ou foi a consolidação de uma parceria artística?

A Sara Tavares é uma jovem cantora que é, para mim, uma pessoa especial, com quem trabalhei e temos uma relação amigável. Eu tomei a iniciativa de a convidar porque ela já o tinha feito, já me tinha convidado para os seus projectos um pouco antes de eu começar a gravar o “Mandjólò”. Tomei a iniciativa de gravar com ela uma música minha que mais uma vez interpretámos juntos ao vivo. Para mim, tem essa importância de registar parte da nossa história desse convívio saudável que tive com ela.

Durante muito tempo transmitiu a imagem de um “músico suporte” de grandes artistas como se tivesse receio das luzes da ribalta. É um medo de aventura?

Eu sou essencialmente um músico. Desiludam-se aqueles que querem fazer de mim uma estrela. O meu caminho é fazer música pela cultura. Neste caso, sendo moçambicano, uma das minhas preocupações está no facto da nossa música ser a menos divulgada quando comparada com a dos outros países. Como moçambicano a residir fora, senti essa responsabilidade e comecei a fazer coisas, mas não com a intenção de ser efectivamente uma estrela ou um solistas, mas com a intenção de contribuir. Este tem sido o meu papel. Talvez façam confusão as pessoas, porque quando se olha para um músico, pensa-se que se pretende ser estrela e ganhar dinheiro. Tudo bem, todas essas coisas podem ser úteis, de facto, porque nós não vivemos sem dinheiro e se eu tiver fama, provavelmente e de forma fácil poderei promover a música de Moçambique, mas não é aí onde estou centrado, isso vai acontecer pela naturalidade das coisas.

Deixa essa ideia da nossa música não conseguir conquistar espaço a nível internacional, apesar de termos grandes nomes. Por onde é que começámos a falhar?

A ideia que passa, normalmente, é que quando a cultura não é divulgada, é porque os fazedores são os responsáveis. A verdade é que os músicos continuam a fazer música e têm sabido cumprir a sua parte. O que não nos lembramos é que todas as forças sociais concorrem para a promoção de uma cultura. O que acontece, para o caso de Moçambique, é que há partes comprometidas com essa cultura, mas que pouco fazem por isso. Não basta só ser músico e estar a compor todos os dias para conseguir divulgar. Há muito mais coisas que devem ser feitas. Nos outros países existe uma cumplicidade quase que global da sociedade, desde entidades até às pessoas que vivem fora do país. Ou seja, existe muito orgulho pelas coisas próprias. Aqui pode-se questionar esse orgulho pela cultura nacional, incluindo pessoas que representam oficialmente este país. A essas pessoas, eu posso questionar se, de facto, amam a nossa cultura. Tenho me relacionado com pessoas de vários países, particularmente gente que fala português e posso afirmar, sem receio, que a nível de preocupação das entidades oficiais sobre a divulgação da cultura nós somos os piores.

Parece que estamos a regredir na preocupação, isto comparando com o que acontecia nos finais dos anos 1990 e princípios de 2000, quando surgiu um movimento, principalmente em Portugal, de músicos que cantavam Moçambique. Podemos até tomar como exemplo o projecto Júlio Silva Band...

Essa foi uma fase que acompanhei à distância. Se está a referir-se a uma fase que se seguiu aos acordos gerais, quando se tentava recuperar um tempo perdido, depois de uma ruptura que houve, em que nada era feito para se divulgar. Haviam poucos grupos que gravavam. Foi feito algum trabalho, que foi importante para movimentar culturalmente o país, mas foi uma fase complicada, porque há uma série de coisas que era preciso reaprender, por exemplo, a música dessa fase deixava muito a desejar, tínhamos sido ultrapassados em diversos aspectos. Mas é uma fase que considero importante porque foi de retoma. Essa retoma continua até hoje com alguns problemas sérios. Por exemplo, há uma coisa que se tem debatido até hoje em relação à música moçambicana, que tem que ver com a música que se tem feito, se ela é representativa em termos de moçambicanidade. É um debate que deve continuar, mas acho que as pessoas devem continuar a fazer música. Houve essa ruptura que me referi, que compromete um pouco a definição daquilo que nós queremos em termos musicais. É por isso que a nossa música anda um pouco à deriva, porque há uma série de coisas que não estão bem definidas e, depois, a aparição faminta da fama, aparição faminta mercantilista de se ganhar alguns tostões sem se olhar para os meios também tem deixado alguma nódoa na nossa música.

Como se constrói a regra uma vez que nos coloca um panorama que demonstra um descontrolo total, provocado por essa busca desenfreada pela fama e dinheiro?

Se calhar se constrói com experiência. Não posso responder com toda a exactidão porque não sou dono da verdade, mas diria que em muita coisa teríamos que bater com a cabeça na parede para aprendermos, porque acho que, neste momento, há muita gente que anda desnorteada, pois é preciso ter em conta que somos um país novo. É mais novo ainda se pensarmos que a nível daquilo que é uma política de mercado Moçambique está a nascer depois dos acordos de paz. Nós não sabíamos lidar com o dinheiro. Se calhar vamos ter que nos queimar com esse dinheiro e há sinais perigosíssimos disso. Espero que esse tipo de situação aconteça ao limite de aprendizagem. Infelizmente, há coisas que não se podem aprender sem que a prática nos traga algumas mazelas e parece que é o caminho que vamos ter que percorrer. É preciso aprender a lidar com as coisas. Nós hoje temos muitos problemas, porque o mundo evoluiu de uma forma repentina e, sendo Moçambique um país pobre, apanha este desenvolvimento tecnológico e esta azáfama toda de comunicação que nos desnorteia com muito mais facilidade em relação aos outros, que já estavam um pouco habituados a lidarem com o luxo.

Essa ideia parece ir para além das fronteiras musicais, estendendo-se para o campo social. É assim?

Sim, coloca-se a nível global e atinge a música. Quando falamos do dinheiro que se movimenta, se vê a olho nu. Ano passado, tivemos alguma perturbação social que tem a ver com este desequilíbrio social que começa a ser evidente. Concretamente, começamos a ver pessoas muito ricas, num país onde existe muita pobreza extrema. E na música há essa tendência de se retratar isso. O artista tem que ser aquele que leva para fora a imagem do seu povo. Nós temos que contribuir para a educação social, então, quando nós próprios nos tornamos nocivos é dramático.

O seu álbum “Manjólò” é essa tentativa de retrato social que sugere que o músico tem de fazer e, acima de tudo, um regresso às suas origens?

“Manjólò” é apenas mais uma daquelas formas de me querer expressar no sentido de mostrar aquilo que é a nossa cultura, de interpretar aquilo que, de facto, tem a ver connosco. Regresso, eu nunca saí de Moçambique. Ou melhor, saí fisicamente por outras necessidades e outras lutas.afastei-me um pouco de uma série das coisas com as quais não me identificava e pela necessidade também de dizer que não consigo divulgar o que é nosso a partir daqui, porque há alguma falta de compreensão e, então, é preciso partir para tentar fazer qualquer coisa. Mas, na verdade, de espírito eu nunca saí.
A sua construção musical tem reflectido essa dualidade de abandono físico e uma permanência espiritual. Mas também tem uma preocupação social.
Estou a trabalhar com uma malta maioritariamente jovem por questões que tem que ver com a intervenção social, outrora chamada intervenção política, mas hoje temos mais que intervir de forma social. Tenho colaborado na produção dum projecto que tem mais a ver com poesia, mas sem ocultar a música que se chama “Sem Crítica”. É uma coisa que me tem entusiasmado, porque são jovens que me expõe a cima da fasquia aquilo que eu via em termos de consciência social em Moçambique. É estimulante nos batermos toda a vida por valores sociais.

Quando olha para este país socialmente, o que o deixa preocupado?

Parece que vamos abandonando os valores cívicos de que Moçambique até foi muito elogiado – e continuam – eventualmente porque as pessoas continuam a não aceitar as coisas nocivas que temos assistidos. A mim preocupa pensar que estamos, de tal forma, tão distraídos que nem chegamos a sentir que a atitude corrupta em Moçambique já se está a tornar quase uma forma cultural. Isso é preocupante porque o que está por trás destas coisas nocivas é extremamente poderoso e as pessoas conscientes muitas vezes sentem-se impotentes para deixar a sua opinião.

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